Diabetes de criança, responsabilidade de adulto

Camila Leporace

(Publicada em 2007 no site Opinião & Notícia, que foi encerrado em 2020, recebeu o Prêmio da Sociedade Brasileira de Diabetes na categoria online – 2007)

Na hora do lanche, na escola, hambúrgueres e refrigerantes passam longe de João Gabriel Ferreira, de sete anos. Acostumado a uma alimentação diferente, ele leva na mochila biscoitos integrais e um suco light ou um iogurte diet. Às vezes, apesar de já habituado a essa alimentação cuidadosa, lamenta por não poder comer “como as outras pessoas”.

O diabetes tipo 1, que exigiria de João mudanças significativas na rotina e nos hábitos, foi diagnosticado quando ele tinha dois anos e meio de idade. “No início foi complicado”, conta sua mãe, Heloisa Ferreira, que afirma que hoje está adaptada à situação. “Muito raramente tomamos sustos com a hipoglicemia, ele fala que está passando mal e vai ficando mole. É difícil, mas sabemos que temos que tomar providência imediata, não podemos deixar o emocional tomar conta”.

A Federação Internacional de Diabetes (IDF, na sigla em inglês) estima – segundo relatório publicado em dezembro de 2006 – que cerca de 440 mil jovens abaixo dos 14 anos de idade, em todo o mundo, tenham diabetes tipo 1, ou seja, sejam insulino-dependentes como João Gabriel. Mais de 70 mil crianças desenvolveriam esse tipo da doença a cada ano. Entre 5 e 10% do total de diabéticos em todo o mundo são do tipo 1, enquanto cerca de 90% têm o tipo 2. O aparecimento da doença provoca alterações não só na vida das crianças e adolescentes como na de toda a família.

Rotina, disciplina, planejamento e equilíbrio são itens que, segundo especialistas, não podem faltar na vida dos insulino-dependentes. Segundo o endocrinologista Isaac Benchimol, é comum os pais sentirem uma espécie de impotência diante do filho com diabetes, pelo fato de que mesmo sem serem médicos precisam cuidar da doença deles. Para ajudar nesse processo, Dr. Benchimol acredita ser importante que os pais se informem, tenham curiosidade sobre o diabetes e corram atrás de saber o máximo possível sobre a doença. O mesmo devem fazer as próprias crianças e os adolescentes diabéticos.

Além de curiosidade para aprender e se manter informado, é fundamental, segundo o endocrinologista, que os portadores de diabetes tenham disciplina. “Eles precisam entender que, quanto maior o controle do metabolismo, melhor a sua qualidade de vida”, diz o médico. Dr. Paulo Solberg, também endocrinologista, concorda. “Quanto melhor o controle glicêmico, menor a chance de complicação”.

Segundo a IDF, quando o diabetes é detectado em jovens, sua expectativa de vida é reduzida em dez a 20 anos. No entanto, isso não é motivo para desespero, pois a explicação, segundo o Dr. Benchimol, é que estatísticas assim são feitas com base em médias. “E essas médias incluem quem se cuida e quem não se cuida”, analisa, complementando que hábitos saudáveis e disciplinados podem permitir que o diabético tenha expectativa de vida semelhante à de pessoas que não têm a doença. Dr. Paulo Solberg cita outra explicação para essas estatísticas. “Quem é diagnosticado hoje tem na mão uma gama de recursos que quem foi diagnosticado há 20 anos não tinha. Hoje em dia, consegue-se um controle muito melhor”.

Cuidados até de madrugada

Segundo o Dr. Solberg, entre as grandes dificuldades dos pais com filhos diabéticos estão o medo da queda no nível de açúcar no sangue – a hipoglicemia -, a dificuldade de aceitar que o filho tem uma doença crônica e a adaptação a uma rotina maior, com uma programação menos espontânea. Crianças pequenas, muitas vezes, têm outros problemas – como a dificuldade para aceitar a aplicação de injeções ou a rejeição da alimentação depois que seus pais já lhe deram doses de insulina – enquanto, na adolescência, a disciplina exigida pelo diabetes entra em conflito com a rebeldia e a falta de rotina típicos da faixa etária.

Antes das refeições, João Gabriel recebe aplicações de insulina de acordo com a quantidade de carboidratos que irá ingerir. Mesmo de madrugada, seus pais acordam para realizar no menino dois exames e checar a taxa de glicemia em seu sangue. “A rotina é um pouco dura”, diz Heloisa, relatando que João acorda às 9h e toma dois tipos de insulina, a de ação basal – que dura 24 horas no organismo – e a ultra-rápida – que começa a fazer efeito cinco minutos depois de ser aplicada e tem ação que se estende por cerca de duas horas – para tomar o café da manhã. Ele toma também insulina ultra-rápida para almoçar e para jantar e faz cerca de dois exames de tarde na escola: para verificar se está com hiperglicemia, na hora do lanche, e avaliar se precisa de insulina, caso esteja com hipoglicemia.

“Fazemos a contagem de carboidratos, o que facilitou muito a vida do meu filho – e a minha também”, conta Claudia Valli, mãe de Tom, seis anos, diagnosticado portador de diabetes tipo 1 aos dois anos e cinco meses. “Por isso, ele come quase tudo, tem uma dieta saudável, equilibrada e, nas festinhas, até come bolo e brigadeiro, o que o deixa radiante. É claro que ele tem uma rotina mais rígida do que a de outras crianças, tem horários e regras. E não tem essa de ‘relaxar só hoje’. Diabetes não tira férias, nem tem feriado”, conta Claudia, apresentando ao mesmo tempo tolerância com o fato de o filho ser criança e responsabilidade com a necessidade que apresenta por ser diabético.

Nem sempre a dieta de uma pessoa diabética exige cortar de vez aqueles lanches hipercalóricos adorados pelas crianças. No entanto, se qualquer pessoa deve ter uma alimentação equilibrada, os diabéticos precisam mais ainda, conforme enfatiza o Dr. Solberg, complementando que é preciso analisar caso-a-caso e que o grau de rigidez com a dieta pode ser diferente dependendo do paciente.

O planejamento também é importante. Segundo o Dr. Benchimol, o ideal para quem tem diabetes é saber que vai “errar”, pensar no que vai consumir e, consciente de que naquele dia vai exagerar, calcular a dose de insulina necessária já com base nisso. Ao mesmo tempo, não se pode injetar uma alta dose do hormônio e depois não consumir a quantidade ou qualidade de alimentos que o organismo se prepara para receber.

Além de controlar a alimentação de uma forma geral, os pais de filhos diabéticos vivem às voltas com os horários das medições da taxa de glicose. Claudia, que assim como Heloisa acorda de madrugada para medir a glicose do filho, até preparou uma apostila para a escola e ensinou as professoras de Tom a medir a taxa de glicose e administrar qualquer eventualidade. “Mesmo assim, quase todas as tardes eu recebo um telefonema de lá. Por isso, eu nunca desligo meu celular”, conta, mostrando que a doença gera uma tensão constante.

A preocupação dessas mães não é exagerada. No entanto, a vantagem de a criança ter uma rotina é a possibilidade de uma tranqüilidade maior, com melhor controle e acompanhamento freqüente da glicemia. “Se você conhece a rotina da criança, pode até saber de quanta insulina ou carboidratos ela vai precisar antes de uma atividade física, por exemplo”, explica o Dr. Solberg, afirmando que além dos cuidados familiares esses pacientes devem ir a consultas de três em três meses, em média, e estar sempre em contato com seus médicos, informando-lhes sobre a taxa de glicose por e-mail ou telefone, por exemplo – medidas que o Dr. Benchimol também aprova.

Fazer exercícios físicos é recomendado, pois movimentar-se ajuda a promover uma maior ação da insulina e a manter um peso saudável. Os diabéticos podem fazer qualquer atividade física, segundo os especialistas. Se desejarem realizar um esporte mais “radical”, no entanto, é importante que façam um planejamento e tenham à sua volta pessoas que saibam da sua condição para ajudá-los se necessário.

De acordo com o Dr. Benchimol, um acompanhamento psicológico pode ser necessário, também, para que a criança diabética entenda seus limites. Dr. Paulo Solberg acredita que esse acompanhamento é bom para todas as crianças, pois nessa fase da vida é difícil se sentir diferente. “E ter a alimentação controlada, a rotina do diabético, é ser diferente”, enfatiza.

Bom humor para encarar desafios

“Uma vez comprei um sabonete de erva-doce e, quando o Tom foi lavar as mãos, ele disse: ‘Mãe, o sabonete é de erva-doce. Eu não posso. Não tem erva-diet?’”, conta Claudia Valli, que além de mãe do Tom é autora da peça Meu Filho é um Doce, em cartaz no Rio de Janeiro. Ela não resistiu e inseriu a pergunta do filho no roteiro da peça, que tem como objetivo mostrar como o bom humor pode ajudar a superar grandes obstáculos e tornar a vida mais leve.

“Senti que precisava, de alguma forma, reverter os sentimentos para o bem de todos. E foi o que fiz. Na minha casa, não existe baixo-astral por causa do diabetes. Existe responsabilidade e cuidados”, relata. “E a peça é a maior prova disso. As pessoas se emocionam, mas riem muito e se divertem também. Desde que o Tom ficou diabético, passei a dar uma festa no dia do diabético (14 de novembro). Ele adora, pois ganha presente, recebe amigos. Uma vez chegaram a me perguntar: ‘Mas você comemora uma doença?’. Eu respondi que não. Eu comemoro a vida”.