Notas sobre filosofia e ciência (2): o estudo da experiência a partir da primeira pessoa

Este post foi escrito a partir do artigo An Introduction to the Enactive Scientific Study of Experience (Moguillansky, Demsar & Riegler, 2021) e dos livros The Embodied Mind (Varela, Thompson e Rosch, 2016) e Mind in Life (Thompson, 2007).

A ciência é feita a partir da observação. Entende-se que aquilo que se observa está no mundo como algo alheio ao observador; algo separado dele. O problema com isso é que estamos inseridos no próprio mundo que desejamos desvendar por meio da ciência. Então, o estudo da experiência humana deveria ser foco da atenção da ciência…

Apesar disso, demorou para que fosse lançada essa luz sobre a observação da experiência em si. A ciência ocidental negligenciou a experiência a partir da primeira pessoa para privilegiar a perspectiva da terceira pessoa. O conhecimento sob a perspectiva da primeira pessoa, por sua vez, tem sido considerado pouco confiável ou sujeito a desvios.

De todo modo, isso tem mudado: a visão tradicional que coloca o objeto de estudo de um lado e o observador de outro, gerando um abismo quando se trata justamente de compreender a experiência humana, tem sido desafiada junto com uma visão crítica, emergente, que reconhece o papel do observador e de sua experiência corporificada (isto é, levando em conta o seu corpo como um todo, e de várias maneiras – a partir de uma concepção de cognição corporificada e situada) para a geração de conhecimento.

Existe um programa de pesquisa chamado NEUROFENOMENOLOGIA, proposto por Francisco Varela (1996), que trata justamente de desenvolver uma ciência para o estudo da consciência. A proposta valoriza a experiência vivida, convocando um diálogo entre as abordagens tradicionais, fundamentadas na terceira pessoa, e a investigação a partir da perspectiva da primeira pessoa. Métodos e procedimentos específicos para esse tipo de pesquisa têm sido desenvolvidos. Ainda não está consolidada a maneira de aproximar as perspectivas da primeira e da terceira pessoa, mas isso está sendo encaminhado e tem sido objeto de debate no campo da ciência cognitiva.

Aliás, como ressaltam os autores do artigo An Introduction to the Enactive Scientific Study of Experience (Moguillansky, Demsar & Riegler, 2021), o estudo da cognição humana é marcado por um paradoxo: o ser humano e a maneira como obtemos conhecimento do mundo torna-se o próprio objeto de estudo de… seres humanos tentando conhecer melhor o mundo; leia-se os cientistas cognitivos, filósofos, psicólogos e afins. Isto é, se a ciência empreende esforços para investigar fenômenos, produzindo explicações e descrições desses fenômenos, a ciência cognitiva tem como principal fenômeno de investigação a cognição em si.

Historicamente, temos aplicado regras para estudar a realidade – regras que compõem metodologias científicas desenvolvidas para estudar objetos desatachados de seus observadores, e que remetem a Descartes, filósofo racionalista que procurou criar um método para chegar à verdade científica. Descartes via a realidade como algo separado de nós; para compreendermos essa realidade, deveríamos separá-la em pedacinhos menores, mais simples, para depois evoluir para algo mais complexo que juntasse esses pedaços (assim ele compreendia a nossa apreensão da realidade; uma concepção que vinha da física, tal como estava se desenvolvendo na época dele, no século XVII). Bem, Descartes veio antes da fenomenologia, que viria propor justamente o estudo da experiência, partindo do todo, não de partes constitutivas do todo.

E hoje não temos apenas um método, como já mencionei.

O problema é que se passaram séculos e continuamos tratando a realidade como algo separado de nós mesmos. Então, a proposta de investigar a partir da primeira pessoa é uma proposta para tentar ajustar isso.

Os autores do artigo explicam que é necessário desenvolver “uma concepção não objetivista da ciência que torne impossível pensar na ciência como uma ferramenta para lançar luz sobre as coisas em si. Em vez disso, o entendimento enativo da ciência sugere que devemos considerar a atividade científica como a extração sistemática e cada vez mais sofisticada de regras da nossa própria experiência vivida. Como tal, a ciência não apenas é falível e propensa a erros, mas também inextricavelmente conectada a nós”.*

Isso, por si só, já é uma reorientação do olhar. Pois caminhamos de uma apreensão das coisas como elas são, aplicando regras pré-fabricadas sobre objetos “alheios” a nós, para uma mudança conceitual e postural, que consiste em tentar colher das próprias coisas que observamos as regras para observá-las. Um dos principais pontos dessa mudança é que, ao reportar experiências, isto é, falar sobre elas, as pessoas tendem a reproduzir crenças sobre como essas experiências acontecem, sobre si mesmas, sobre o mundo, em vez de se ater à experiência vivida, em si. É uma questão do que é/o que existe versus o que é descrito/estudado; de novo a ontologia e epistemologia; como quando passamos por uma situação de pânico e depois contamos sobre a situação a alguém. O que sentimos é uma coisa, o que contamos é outra (que pode conter muito da primeira, mas pode passar por várias releituras e racionalizações quando já estamos “fora” daquela ação).

Ainda segundo o artigo que menciono aqui, os primeiros estudos com métodos bem definidos, no contexto neurofenomenológico, foram conduzidos pela pesquisadora Claire Petitmengin e trataram do surgimento da intuição. Eles deram origem ao que hoje se denomina entrevista microfenomenológica. A ideia é “auxiliar o entrevistado a selecionar uma experiência singular, precisamente situada no espaço e no tempo, ‘evocando’ essa experiência e descrevendo-a. A descrição geralmente visa elucidar tanto a dimensão síncrona quanto a diacrônica de uma dada experiência. A primeira se refere à configuração de diferentes aspectos da ‘paisagem’ experiencial em um determinado momento, e a última a como essa paisagem experiencial se desdobrou ao longo do tempo. Auxiliar o entrevistado a fornecer esta descrição implica em afrouxar sua absorção no conteúdo (o “o que”) da experiência, fazendo perguntas específicas que permitem a articulação de seu modo de doação (o “como”), bem como fazer o entrevistado concentrar-se na experiência vivida sempre que se desviar dela para descrever generalizações, explicações, crenças ou julgamentos”.

Mesmo após algumas leituras, claro, ainda tenho várias questões sobre como a entrevista microfenomenológica é conduzida, as dificuldades que envolve etc. Algumas delas com certeza serão elucidadas junto a uma das autoras do artigo, Dra. Camila Moguillansky, que estará com o grupo de pesquisa GEPFE, de Filosofia da Educação, de que participo na PUC-Rio. Compartilho mais depois.

*Traduções feitas por mim, do inglês

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Notas sobre filosofia e ciência

Inspiradas especialmente (mas não somente) pela leitura de “Maturana e a Educação”, de Nize Pellanda, Editora Autêntica, 2009

“Quando o conjunto de teorias disponíveis numa época não dão mais conta de novos objetos da ciência, começam a emergir outras teorias que vão configurar um novo paradigma científico. Nesse conjunto, há sempre um grupo de pressupostos básicos e conceitos fundamentais que vai fazer o papel de urdidura de uma rede orgânica e coerente que é o paradigma”, diz Nize Pellanda, à página 13 do livro Maturana e a Educação (Ed. Autêntica, 2009). A autora esclarece que se refere, aqui, ao conceito de paradigma tal como concebido por Thomas Kuhn.

Essa explicação para o surgimento de novas teorias é simples: se precisamos estudar certos objetos, fenômenos, acontecimentos que fogem às teorias que temos disponíveis para compreendê-los, estamos precisando de… novas teorias. Apesar de simples, esse raciocínio esconde alguns aspectos, digamos, espinhosos no campo da pesquisa.

Por exemplo, a tentativa de “encaixar” novos objetos de pesquisa em velhos paradigmas ou o hábito de seguir analisando fenômenos científicos a partir de premissas que eventualmente já foram superadas ou precisam ser revistas/remodeladas. Sim, mesmo sem que se perceba, isso muitas vezes acontece. E a importância da pesquisa teórica passa por aí: a necessidade de conhecer a teoria para que ela sirva para a empiria de modo a abrir caminho para novas descobertas. Afinal, ao mudar os fundamentos, mudamos o que é construído sobre esses fundamentos. Lembrando que mudar os fundamentos não é jogar fora tudo que se sabe até dado momento para começar a construir tudo de novo, do zero, mas saber agregar o que é novo ao que se provou ser válido no “velho”.

Também na pesquisa ainda se observa, por vezes, uma certa insistência em fazer perguntas esperando uma determinada resposta (em vez de estar verdadeiramente aberto aos resultados que podem surgir). O pesquisador precisa topar o desafio de não saber bem onde chegará. Faz parte do show. Afinal, o caminho será construído durante a própria investigação que ele vai fazer; então, como saber o que será encontrado no ponto final? Claro, é preciso ter perguntas que impulsionem esse caminho e um método que sirva como guia; ter parâmetros, ter prazos, tudo isso é essencial; também é natural ter expectativas sobre as descobertas que serão feitas, e levantar hipóteses é mais do que recomendado; mas, sem uma real abertura ao novo, a pesquisa perde o sentido.

Ainda no citado livro sobre Humberto Maturana, um conhecido neurobiólogo chileno, a autora afirma que têm surgido objetos cada vez mais complexos no trabalho científico e que esses objetos desafiam as formas tradicionais de pesquisa. É difícil falar da importância da obra de Maturana sem mencionar esse fato, porque a proposta teórica desse autor emerge justamente do seu trabalho como cientista, que o leva a concluir que o mundo não é fragmentado e não é uma realidade à parte; o investigador faz parte dessa realidade, a constitui.

O neurobiólogo é um dos pensadores do chamado paradigma da complexidade – o qual supera a realidade concebida de maneira “linear, fragmentada como se fosse uma coleção de coisas e estável”, sendo o sujeito que estuda essa realidade sempre externo a ela (página 14 do livro Maturana e a Educação). Se não somos sujeitos externos à realidade que observamos e que desejamos investigar, somos parte dessa realidade; desse modo, nota-se que epistemologia e ontologia não se separam. Isto é, “observar faz parte não somente da geração do fenômeno a explicar, como também da própria ontologia de cada observador” (página 26 do livro Maturana e a Educação).

Estou levantando muitas questões para um post só, eu sei. É que o objetivo deste post é, justamente, fazer anotações para depois juntar tudo de alguma maneira num texto mais coerente (ou não). O processo de pesquisa também passa por isto, especialmente o processo de uma pesquisa teórica.

Neste caso aqui, ficam algumas questões importantes para possíveis discussões futuras:

  • A impossível dissociação entre sujeito observador e realidade observada torna impossível a “neutralidade” na pesquisa?
  • O que seria essa almejada “neutralidade” e qual seria a importância dela, se houver?
  • Por que não se pode separar ciência e filosofia, teoria e prática, humano e natureza, mente e corpo, epistemologia e ontologia?

E muitas outras perguntas mais.

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A atitude filosófica, o jornalismo e o querer-saber

Como fica claro na área do Perfil do meu site, a minha graduação foi em jornalismo. Logo cedo na carreira, depois de dois anos de formada, me interessei pela educação enquanto área de pesquisa. Fiquei uns onze anos trabalhando em comunicação digital, educação a distância e tecnologias educacionais – projetos que me deram bastante experiência mas também me despertaram muitas questões – e em 2016 decidi que queria ir fundo nos estudos da educação.

Como sempre quis construir uma carreira acadêmica, decidi que o flerte (que durava desde quando me formei no bacharelado) deveria virar namoro; fiz a seleção do mestrado, passei e comecei a estudar as tecnologias digitais sob a perspectiva da Filosofia da Educação. Aí casei com a pesquisa: no doutorado, sigo na Filosofia da Educação fazendo uma pesquisa que tem como objetivo investigar a aprendizagem a partir de um contraste com machine learning. No meu trabalho, me utilizo de uma literatura e de uma série de conceitos situados em áreas variadas: ciência cognitiva, neurociência, filosofia, inteligência artificial, biologia, psicologia e outras.

A minha pesquisa é multidisciplinar como eu 😉 Coisa de gente curiosa mesmo.

Bem, mas este post se chama atitude filosófica e é sobre isso que quero falar aqui.

A atitude filosófica talvez seja um dos pontos mais importantes de conexão entre as duas esferas profissionais que tenho na vida: o jornalismo e a filosofia. Pois desde quando quis fazer jornalismo tomei essa decisão porque gostava de escrever e de ler, mas também porque me considerava questionadora, crítica – e por gostar de pesquisar. Sempre acho que todo assunto pode ser investigado e olhado sob outros ângulos; acredito que tudo é um recorte de algo mais vasto; gosto de pensar sobre os porquês das coisas; gosto de ouvir as histórias das pessoas (e de contar as minhas, mas aqui isso não vem tanto ao caso!).

Percebo, inclusive, que muitos jornalistas não têm (ou perderam) essa curiosidade, vontade de ir atrás das coisas, esse encantamento pela apuração. Admiro os jornalistas curiosos que se munem dessa vontade de saber para ir atrás das histórias, tentando contá-las da forma mais consciente possível.

Consciente acho que é uma boa palavra, porque a verdade sempre tem muitos elementos, aspectos e pontos de vista, e o jornalismo precisa dar espaço para eles, mas também deve respeitar a ciência e trabalhar para que as verdades científicas ganhem espaço. Também deve ter o bom senso de evitar dar espaço para aquilo que não ajuda uma sociedade a crescer e se desenvolver. Jornalismo, afinal, também é construção de uma sociedade melhor, mais aberta, democrática e plural; e eu defendo que isso não é negociável! Mas, enfim, o ponto aqui é: a atividade jornalística exige curiosidade, querer investigar, querer saber. Estar aberto ao que pode vir a encontrar.

A filosofia, por sua vez, também tem melhor aderência aos seres curiosos. A chamada “cabeça fechada” e a filosofia não se encaixam. Com a filosofia, a gente sempre pode questionar, sempre pode discutir as premissas. Não é um questionamento no vazio, sem eira nem beira; mas uma investigação que caminha lado a lado com a empiria, com a pesquisa prática. A filosofia e a ciência também caminham juntas, portanto. Ou, ao menos, a filosofia que tem me interessado é essa.

Debates epistemológicos vazios não me atraem, porque a minha pesquisa é filosófica mas também é fazer-ciência (assim com hífen que acho que encaixa bem com o que quero dizer). O que os pesquisadores que estou estudando fazem acaba levando a olharmos um pouco por baixo do tapete às vezes, e dizer: mas você viu que este tapete está sedimentado sobre estes tacos aqui, e estes tacos estão ruindo? Será que não é melhor trocar os tacos antes de continuar a caminhar? Se não trocar, a poeira vai se acumular entre o tapete e o chão… o chão vai ruir… e só vai restar o tapete lá em cima, que depois de um tempo não vai aguentar também.

Com isso, quero dizer que a gente precisa olhar para os pilares que sustentam as pesquisas empíricas, porque, veja: se determinamos que certas premissas são verdadeiras e seguimos fazendo pesquisas a partir delas, o que temos? Pesquisas que não conseguem se desvencilhar dessas premissas, que são os seus sustentáculos.

Quase nunca precisamos jogar tudo fora e recomeçar, mas quase sempre podemos rever parte de nossas convicções, e essa atitude de abertura, essa postura do querer-saber, é filosófica – e pode ser também jornalística, pode vir de um educador, de um psicólogo, um economista, um matemático, um biólogo, enfim, todos podem adotar essa atitude filosófica.

Portanto, não há nada assim de tão estranho em querer filosofar, não se trata de “viajar”, nem de complicar as coisas (bom, às vezes pode complicar, ou ao menos complexificar)… trata-se de levantar o tapete, e isso pode às vezes fazer a gente espirrar ou tossir, mas vale a pena. Afinal, em alguns casos a outra opção é a estrutura ruir!

Então, para começar a filosofar, é preciso ter interesse, curiosidade e ter olhar crítico; observar; topar uma aventura em que muitas variáveis irão se apresentar. Topar o diálogo, topar assumir que quanto mais sabemos, menos parece que sabemos.

Mas não há apenas uma porta de entrada para a filosofia. Começar pelos gregos pode ser bom quando se quer aprender história da filosofia, mas para aprender a ter uma atitude filosófica o exercício é o de saber ler e interpretar, flexibilizar, saber ouvir, se interessar por mais coisas do que cabem no seu “quadrado”. Aliás, aproveitar para “deixar de ser quadrado” também pode ser bom – quando a gente começa a se abrir mais, ouvir mais, a gente acaba fazendo isso naturalmente…

Para quem está se perguntando por que usei a imagem do filme “O lado bom da vida”, ou “Silver Linings Playbook”, no original…

… Bem, este post teve como inspiração uma aula de Filosofia da Educação ministrada pelo Professor Dr. Carlos Reis, da Universidade de Coimbra. Com muitos alunos da Psicologia (na UC Psicologia e Ciências da Educação estão sob o mesmo departamento), o professor levou a turma a pensar sobre atitude filosófica a partir do filme. Se não viu, veja com esse olhar. Vale a pena!

Como ler (e entender!) textos filosóficos

Começar a ler filosofia não é fácil e pode desanimar muita gente já na primeira tentativa. O motivo disso pode ser a pouca familiaridade do leitor com esse tipo de texto, pouca bagagem anterior em filosofia – o que faz com que não entenda certos conceitos e termos, desestimulando já na largada –, medo de não estar entendendo nada ou até uma vontade excessiva de entender tudo de uma vez só, que, definitivamente, não costuma rolar com textos filosóficos (ou acadêmicos em geral…).

Foto: Seven Shooter @ Unsplash

Este post é para apresentar alguns passos simples que, se seguidos, podem ajudar na leitura e apreensão das ideias presentes em textos filosóficos. Serve, porém, para quem precisa ler textos em geral, especialmente de teor acadêmico/científico. As orientações são baseadas em dois livros do mineiro Antônio Joaquim Severino, que referencio ao final do post. Severino desenvolveu uma metodologia para a leitura de textos filosóficos.

Aqui também me baseio na minha própria experiência com a leitura de textos de filosofia e nas aulas do professor Ralph Bannell, meu orientador de doutorado, com quem fiz estágio à docência em filosofia da educação. Ressalto que faço algumas (poucas) adaptações à metodologia de Severino, e indico a leitura integral dos livros dele a quem tem interesse no assunto.

ANTES DE COMEÇAR – Delimitação da unidade de leitura. Você precisa escolher o que vai ler e separar a sua leitura em unidades. Um capítulo? Um artigo/ensaio filosófico? Depois de escolher, não é demais dar uma pesquisada no autor, período em que escreveu, se está vivo ainda; dar uma olhada na bibliografia dele e na biografia etc. Lembrando que o autor escreve no contexto de sua época, de sua vida, de sua proposta de trabalho, e quanto mais der para saber sobre isso previamente, mais isso pode ajudar na compreensão dos textos dele.

PASSO 1 – Análise textual

Severino indica que, após a escolha do que será lido, é preciso fazer o que ele chama de análise textual. Ele une este passo ao passo seguinte, a esquematização, mas eu cada vez mais tenho considerado a esquematização um passo (e um tópico) importante demais para ser unido à análise temática, então aqui proponho que essas fases sejam vistas como etapas separadas.

A etapa da análise textual significa fazer uma primeira abordagem do texto, ainda não tão aprofundada. A ideia, neste primeiro momento de leitura, não é esgotar a compreensão de todo o texto, mas que o leitor tenha contato com a unidade de leitura escolhida; a ideia é que obtenha uma visão panorâmica, como Severino fala; nesse momento, é possível observar o estilo do autor, o método que ele usa, isto é, a forma como escreve e organiza suas ideias e pensamentos. Ainda neste momento, como a ideia é buscar familiaridade com o texto, o leitor deve assinalar aqueles elementos que, à primeira vista, lhe geram dúvidas. Severino recomenda que sejam buscados dados a respeito do autor, com o cuidado para que os comentaristas (as pessoas que escreveram esses textos sobre o autor) não “contaminem” a perspectiva individual que o leitor será do texto. Mas, eu indiquei que você faça isso antes mesmo de dar início aos passos de Severino, láá no início. Ainda na etapa de análise textual, o leitor deve assinalar termos e conceitos que desconheça, mas que pareçam importantes para que aquele texto seja compreendido. Deve anotar esses termos em uma folha/arquivo separado. O leitor deve anotar, ainda, eventuais fatos históricos citados pelo autor e referências a outros autores que lhe causem dúvida.

Severino recomenda, então, que após a leitura e a identificação dessas dúvidas o leitor busque informação sobre elas, tentando esclarecê-las. É importante fazer isso, de fato, podendo nesse momento usar dicionários de termos de filosofia, por exemplo; mas também é importante não deixar que essa pesquisa se torne tão aprofundada a ponto de desvirtuar o leitor de seu objetivo inicial, que seria compreender o texto selecionado. Então, é preciso um bocado de bom senso para ter em mente que não é preciso esclarecer tudo assim, de saída; muito será resolvido no decorrer da análise daquele texto, da troca de ideias com outras pessoas sobre o texto ou da aula sobre ele, enfim. A minha dica é que você procure saber um pouco, se torne mais confortável com as dúvidas, sem “pirar”.

PASSO 1 E 1/2 – Esquematização

Nesta etapa, a ideia é ler o texto extraindo dele as principais ideias presentes a cada parágrafo, ou a cada dois parágrafos, mais ou menos. Atenção: NÃO se trata de fazer um RESUMO do texto. O trabalho, aqui, é de apreensão das ideias do autor de uma maneira sistematizada, e vou explicar como. Você deve ler cada parágrafo e escrever com as suas próprias palavras as ideias do autor presentes naquele parágrafo. Uma dica um pouco incomum: escreva com as suas próprias palavras e em primeira pessoa. Sim, como se VOCÊ estivesse escrevendo, produzindo aquelas ideias. Isso pode parecer estranho de cara, mas fará com que você “entre na cabeça” do autor, colocando-se no lugar dele. A ideia é que, ao final desta etapa, você tenha as principais ideias extraídas do texto NA ORDEM em que elas aparecem. Isso servirá como preparação para a etapa seguinte.

PASSO 2 – Análise Temática

Nesta etapa, a ideia é que você compreenda a mensagem passada pelo autor no texto, de modo global e sem intervenções. O que significa sem intervenções? Não é hora, ainda, de você expor a sua opinião ou o ponto de vista de outros autores. Não é nem mesmo a hora de expor a opinião desse mesmo autor que esteja presente em outros textos dele, ou sobre outros assuntos. Você terá um outro momento para fazer isso, no seu ensaio filosófico. Também não é hora de tirar conclusões precipitadas. Apenas faça o seguinte: 1) identifique o tema do texto; 2) identifique o problema que o autor se propõe a resolver; 3) siga e exponha o raciocínio seguido pelo autor e 4) exponha a tese a que ele chega. Detalhando um pouco mais:

Tema – Você deverá identificar, em uma linha ou duas, qual o TEMA da unidade de leitura. Não se deixe enganar pelo título, que nem sempre é bom para revelar o tema do texto.

Problema – A seguir, em algumas linhas, você deve expressar qual o problema que o autor se propõe a resolver/argumentar sobre. Grande parte dos textos filosóficos e científicos é motivada por um problema uma questão sobre a qual o autor se propõe a argumentar. Ele vai elaborar argumentos justamente pensando na “defesa” que fará daquela questão, que o provocou, o instigou. Ou irá “atacar” uma ideia com a qual não concorda, desenvolvendo seus próprios argumentos para isso. Pode, ainda, concordar em parte com uma determinada ideia/tese, mas querer colocar alguns pontos nos quais diverge. Então, identifique essa questão, dificuldade, esse problema e anote. Tenha em mente que nem sempre está tão óbvio qual é esse problema. Mas a sua esquematização ajudará a identificá-lo.

Raciocínio/Argumentação – Com base na sua esquematização, agrupe as informações que você extraiu de cada parágrafo em parágrafos/porções de texto contendo as ideias presentes naquele conjunto de frases. Por exemplo, você pode encontrar relação entre o primeiro e o quinto parágrafo; essa é a oportunidade de juntar as pontas, escrevendo em um parágrafo o que é essa ideia. Ao fazer isso, você estará identificando a maneira como o autor responde à questão que ele mesmo se propõe resolver, como raciocina para resolvê-la, ou: como ele argumenta. Isto é, os argumentos, as defesas que ele efetivamente elabora para resolver o impasse, a dificuldade que o motivou.

Tese – Após expor a argumentação do autor, você será capaz de expor a tese dele; em resumo, o que ele argumenta? O que propõe? Então, faz o próximo passo, e escreve a tese, resumidamente.

PASSO 3 – Análise interpretativa/Interpretação

É chegada a hora de começar a interpretar as ideias expostas pelo autor no texto lido. Neste momento, o leitor coloca as ideias do autor em diálogo com as ideias de outros autores. Esses autores que falam do autor em questão são, nesse contexto, comentaristas. É um momento que você situa o autor e o texto lido também em relação a outros textos do próprio autor, de modo a buscar localizá-lo numa esfera maior de pensamento daquele autor. Pode verificar como as ideias que ele expõe no texto que você leu se relacionam com ideias em que ele expõe em outros textos dele, por exemplo, ou contrapor essas ideias com as perspectivas de outros autores sobre o que ele escreveu.

Severino destaca que um momento importante desta etapa de interpretação é a formação de uma perspectiva crítica sobre o que foi lido; isto significa, neste caso, procurar julgar a coerência interna do texto e também a sua originalidade, a contribuição que dá ao problema que aborda. Tentar entender até que ponto o autor conseguiu alcançar, de modo lógico, os objetivos que propôs a si mesmo. Severino diz o seguinte: “Pergunta-se até que ponto o raciocínio foi eficaz na demonstração da tese proposta e até que ponto a conclusão a que chegou está realmente fundada numa argumentação sólida e sem falhas, coerente com as suas premissas e com várias etapas percorridas”. Também é o momento de procurar compreender se a argumentação do autor é original e sua contribuição, relevante.

PASSO 4 – Problematização

Esta é uma etapa em que se busca desde problemas textuais possivelmente presentes no texto até possíveis problemas de interpretação. É uma etapa bacana especialmente quando se realiza um trabalho em grupo, pois neste momento pode-se debater essas impressões. Vale ler as palavras de Severino diferenciando esta etapa da fase de identificar o problema, presente na análise temática: “Cumpre observar a distinção a ser feita entre a tarefa de determinação do problema da unidade, segunda etapa da análise temática, e a problematização geral do texto, última etapa da análise de textos científicos. No primeiro caso, o que se pede é o desvelamento da situação de conflito que provocou o autor
para a busca de uma solução. No presente momento, problematização é
tomada em sentido amplo e visa levantar, para a discussão e a reflexão, as
questões explícitas ou implícitas no texto”.

PASSO 5 – Síntese Pessoal

Trata-se talvez da etapa mais aguardada entre estudantes, que durante todo esse processo ficam geralmente bem ansiosos para dizer o que acham do que leram! Bom, esta é de fato a hora de discutir a problemática levantada no texto para, a partir da reflexão a que ele leva, desenvolver o seu próprio ensaio filosófico. A síntese é uma preparação para o ensaio, ainda não é o ensaio em si. Mas, se bem feita, ajuda bastante na hora de elaborá-lo.

É interessante como a metodologia de Severino termina com esta etapa, (chamada de síntese pessoal) que exige que você escreva, exponha a sua perspectiva; isso mostra que a apropriação das ideias presentes em um texto de caráter filosófico também depende do exercício da redação. Ao escrever nós organizamos o nosso pensamento e conseguimos realizar nossas próprias reflexões, assim conseguindo desenvolver a habilidade de pensar filosoficamente.

Severino aponta esta etapa como uma fase de amadurecimento intelectual e de exercício do raciocínio. Nesta etapa, pode escolher um ou mais aspectos do texto lido que mais tenham lhe saltado aos olhos, trabalhando em cima desses aspectos. Você deve também buscar o embasamento conseguido com a leitura dos textos dos comentaristas, principalmente se toda a aventura filosófica, o tema ou o(s) autor(es) forem novidade para você.

Lembre-se que, no caso de um ensaio filosófico ou texto acadêmico, o que vale não é a nossa opinião livre, mas uma perspectiva embasada, bem argumentada – como você terá observado no texto lido, se tiver gostado da maneira como o autor conduziu sua argumentação 😉

Ah, também vale lembrar que um ensaio filosófico geralmente contém as sínteses de vários textos e não somente de um.

Antes de terminar…

Mais umas dicas.

Sossego – Às vezes, é difícil conseguir um lugar sossegado para ler, estudar, escrever. Mas isso se torna ainda mais importante quando nos propomos a ler um texto seguindo etapas dessa metodologia, isto é, procurando extrair mesmo um aprendizado, alcançando uma compreensão dos textos. Então, ler no ônibus, metrô, no meio de um ambiente barulhento pode complicar. Quando o confinamento acabar, a biblioteca é a melhor opção para esse tipo de tarefa.

Tempo – Se você não tem tempo para seguir TODOS esses passos toda vez que se propõe a ler um texto filosófico, indico que siga, pelo menos, os passos 1 e 2. Com esses passos você terá uma excelente visão geral do texto, podendo partir para as etapas seguintes somente se você for se aprofundar naquela leitura. Claro, o ideal é você conseguir avançar o máximo possível, contrastar o texto com outras leituras do mesmo autor, escrever as suas ideias, dialogar com ele etc., mas, de fato, muitas vezes não há tempo para isso e os passos 1 e 2 são suficientes para uma apreensão excelente de um texto filosófico/acadêmico. Só ler sem anotar nada não adianta muito no caso de textos filosóficos.

Espero que este post, apesar de longo, tenha sido útil. Recomendo fortemente a leitura dos materiais a seguir, dos quais as orientações foram retiradas. E agradeço ao meu professor e orientador de doutorado Ralph Ings Bannell por ensinar essa metodologia em suas aulas de filosofia.

Fontes:

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2013.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Como ler um texto de filosofia. São Paulo: Paulus, 2009.

Big Data na Educação: é preciso abrir essa caixa preta

Navegando pela rede, você certamente já se viu diante de anúncios de algo que andou procurando, como se o seu navegador tivesse “adivinhado” o que você queria. Ou já recebeu uma sugestão de filme ou série que a Netflix achou que seria “a sua cara”…

(Bem, nem sempre funciona tão bem…)

… pois os nossos dados têm sido utilizados em sistemas de machine learning para fazer previsões e identificar tendências.

Muito se tem falado sobre as potencialidades do big data para a educação. Para quem não está familiarizado com o termo, trata-se dessas “coleções maciças de dados” (segundo os autores do artigo Tecnologias digitais na educação: a máquina, o humano e os espaços de resistência; clique para ler) que são geradas na medida em que navegamos por sistemas digitais e deixamos os nossos rastros nessas plataformas.

O que isso pode significar quando se trata de educação? A pergunta ainda é uma caixa preta, mas é preciso um esforço para abri-la.

Apesar do oceano de implicações positivas que vêm sendo apontadas para o uso de machine learning e de big data na educação, é preciso ir devagar com esse andor porque o santo é de barro. O que (vem sendo propagado que) o big data promete?

Quando se trata do uso de plataformas de aprendizagem baseadas em machine learning, basicamente o que se destaca é que, tendo mais informação sobre o desempenho e o ritmo individual de cada aluno, se poderá oferecer conteúdos mais apropriados à sua aprendizagem, no tempo e na sequência mais adequados para cada um. Com isso, se alcançaria “melhores” resultados, aproveitando ao máximo as potencialidades de cada aluno, resolvendo problemas e dificuldades que eles eventualmente tenham etc. Parece perfeito – e alinhado ao discurso da tecnologia como panaceia para tudo aquilo que se tem tentado solucionar na educação há tantos anos. Bem, esse, em si, já é um indício de que é preciso olhar para o tema com mais atenção.

Um exemplo, tirado deste livro aqui, intitulado Learning with Big Data – The Future of Education, é o rastreamento do comportamento de alunos em relação a vídeos de palestras numa plataforma online de atividades: é possível saber quando eles assistem aos vídeos, quando pausam, se aceleram para ver mais rápido, se os abandonam antes de terminar de assistir. Com base na identificação desses padrões, professores poderiam ajustar lições, decidir reforçar conceitos que aparentemente os alunos não entenderam bem ou mudar a maneira de explicar determinado assunto, por exemplo.

Mas, isso quer dizer que esteja ocorrendo um processo de aprendizagem melhor, realmente? Antes, aliás, isso significa que está ocorrendo, de fato, aprendizagem? O discurso costuma ser de que sim, mas… essa é uma conclusão que não se deve apressar.

Um artigo do New York Times – ‘The Machines Are Learning, and So Are the Students (“As Maquinas estão aprendendo, e também os alunos”), de Craig Smith, publicado em dezembro do ano passado – já no título traz um pressuposto enviesado para o uso de inteligência artificial na forma de machine learning: a ideia de que as máquinas aprendem. Mais audaciosamente, indica que os alunos estão aprendendo, também, graças a essas máquinas e sua suposta sagacidade. Smith diz:

Slowly, algorithms are making their way into classrooms, taking over repetitive tasks like grading, optimizing coursework to fit individual student needs and revolutionizing the preparation for College Board exams like the SAT. A plethora of online courses and tutorials also have freed teachers from lecturing and allowed them to spend class time working on problem solving with students instead.

Aqui, já vemos uma outra face do discurso: para além de individualizar o ensino, o uso de sistemas baseados em algoritmos poderia poupar os professores de tarefas como avaliar seus alunos e até de dar aulas expositivas (hum… alguém perguntou aos professores se eles querem parar de dar suas aulas?), podendo usar o tempo para trabalhar com seu alunos em “resolução de problemas”. Perceba que o discurso é sempre de usar melhor o tempo, aprender melhor, mas, não se sabe o que esse “melhor” de fato significa. Com frequência, a ideia adjacente é a de que o professor pode ser substituído, ao menos em certas atividades (tão diferentes quanto dar aulas expositivas e corrigir avaliações…).

Em outro trecho, que reproduzo a seguir, o jornalista aponta pesquisas (sem especificar quais) que teriam mostrado a superioridade de tutores na forma de inteligência artificial em relação a tutores humanos. Isso se daria porque “o computador é mais paciente” que o professor, além de mais insightful – o que poderia significar ter ideias melhores ou ser mais criativo (?)

Studies show that these systems can raise student performance well beyond the level of conventional classes and even beyond the level achieved by students who receive instruction from human tutors. A.I. tutors perform better, in part, because a computer is more patient and often more insightful.

Será?

Num cenário em que predomina o discurso sobre os efeitos positivos da inteligência artificial na educação, esse artigo é apenas um exemplo. São muitos os que trazem algo nessa mesma linha.

Somente com estas breves referências que apontei até aqui, já abrimos uma infinidade de questões a serem postas em xeque tanto sobre o uso efetivo da IA na educação na forma de [machine learning + big data] quanto sobre o discurso. Predomina uma argumentação acrítica e pasteurizada, que costuma assinalar os ganhos sem pesar as possíveis consequências advindas do uso massivo de dados.

Não se procura saber, nem mesmo, o que são esses dados. Isto é, o que quer dizer, efetivamente, o tempo que um estudante levou para fazer uma lição? Quando esse tempo é fornecido a partir do rastreamento da atividade desse aluno, ele não parece dizer muita coisa. O que realmente aconteceu com o aluno durante o tempo em que ele estava logado? Não somos meros logins, somos pessoas, num determinado espaço, em determinado momento. Talvez não possamos ser representados somente por números.

De volta para o futuro

Mesmo que se pudesse prever todas as adversidades envolvidas em dada situação cujo objetivo é o ensino e a aprendizagem, aí já está um x da questão: a previsão. Especialistas com um olhar crítico à IA na educação vêm indicando que isso pode gerar um passado cristalizado e prender os alunos a um futuro rígido, imutável.

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Uma vez que o machine learning trabalha a partir de tais previsões, já que se utiliza de dados gerados pelos estudantes para que, com esses dados, possa identificar tendências, há o risco de os estudantes se tornarem eternamente atados ao seu passado – carregando uma espécie de mochila pesada de históricos escolares detalhados a seu respeito que nunca são esquecidos e podem permanecer acessíveis por mais tempo do que seria desejável.

Seu futuro lhes faria vítimas das previsões justamente baseadas em dados estáticos, os quais podem não corresponder mais à sua realidade. Somos, afinal, seres em constante transformação e evolução. Envolvidas nisso há diversas implicações, especialmente, para a privacidade dos alunos – já que os dados podem ficar acessíveis para fins questionáveis, o que pode prejudicar sua vida profissional e pessoal.

Neutralidade tecnológica?

De onde vêm os dados gerados a partir da atividade dos alunos em uma plataforma baseada em machine learning? Dados não surgem por acaso, não são espontâneos e nem existem por si só. Eles surgem nas interações entre alunos e máquinas, e essas interações são limitadas pela maneira como o sistema é construído, pelo que se espera dele, pelo que é injetado em seus algoritmos. Isto é, dados emergem a partir de decisões tomadas no desenvolvimento dos algoritmos para os sistemas de IA utilizados nas plataformas.

Nesse desenvolvimento, priorizam-se determinados aspectos em detrimento de outros.

Fatalmente, também por sua vez, os resultados obtidos trarão consigo a priorização de certo aspectos e não de outros. Um problema relevante, por trás disso, é que frequentemente somos avaliados por fórmulas secretas que não compreendemos, como ressalta a matemática Cathy O’Neil. Se o que se avalia não fica claro, é certo que, como O’Neil explica: “Para construir um algoritmo, são necessárias duas coisas: dados – o que aconteceu no passado – e uma definição de sucesso, aquilo que estamos procurando e pelo que estamos geralmente esperando”.

A definição de sucesso adotada estará instilada nos algoritmos. A suposta neutralidade tecnológica não existe...

Vieses

Pode-se facilmente compreender como pode haver (e há, muitos) vieses em algoritmos quando se trata do preconceito racial em alguns sistemas de reconhecimento facial, por exemplo. Esses são casos contundentes e que têm adquirido notoriedade, tornando-se o centro de preocupações éticas concernentes ao campo.

A IBM afirmou que abandonaria pesquisa em reconhecimento facial por conta das implicações éticas e da falta de regulamentação – Leia

Na educação, mencionei questões sobre a privacidade dos dados dos estudantes e ao fato de os sistemas não serem claros quanto às variáveis relacionadas ao que é avaliado. Mas, ainda não falei dos professores. Há também iniciativas que procuram avaliá-los a partir de big data, com consequências que merecem (muita!) atenção.

Em sua palestra no TED, O’Neil cita a diretora de um colégio no Brooklyn que, em 2011, disse a ela que sua escola estava avaliando os professores a partir de um algoritmo complexo – e secreto. A diretora relata que tentou conseguir a fórmula para entender os critérios envolvidos naquela avaliação, mas o que ouviu da secretaria de educação foi que não adiantava lhe explicar porque ela não entenderia, já que se tratava de matemática.

Conclusão (conheça a história no TED): professores daquela escola foram demitidos por causa da tal fórmula secreta, uma caixa preta que a diretora tentou abrir, sem sucesso.

Como O’Neil destaca, o poder de destruição de um algoritmo projetado de maneira equivocada é imenso, e essa destruição pode se arrastar por bastante tempo. Mas, quando o assunto é uma modelagem envolvendo algoritmos, o pior de tudo é a falta de transparência. Por isso ela cunhou o termo “armas de destruição matemática”.

Não somos somente pontinhos em um grande mapa de dados…
(Imagem: Maria Bobrova @ Unsplash)

O big data na educação é uma caixa preta devido à dificuldade, em geral, de entendimento do que a inteligência artificial, na forma do machine learning, significa ou pode significar para processos educacionais. E se torna ainda mais obscura quando, sem que se conheça os critérios utilizados, alunos e educadores sejam submetidos a avaliações e análises frequentemente injustas; e o pior, sem poder contestá-las.

O’Neil dá vários exemplos de como o uso indevido de dados tem prejudicado pessoas em variadas situações. Para entender isso melhor, é preciso olhar para a noção de modelo; o que é um modelo e por que ele pode se tornar uma arma de destruição matemática? Explicarei isso em outro post.

Agradeço à Giselle Ferreira, professora da PUC-Rio que está ministrando uma disciplina sobre big data e educação este semestre, pelos ricos debates que tanto colaboraram com insights para que este(s) post(s) fossem escritos. Leia o blog dela, no qual é possível obter uma perspectiva crítica sobre as tecnologias educacionais: https://visoesperifericas.blog/

Imagem principal do post: Franki Chamaki @ Unsplash

Introdução à Fenomenologia com Hubert Dreyfus

Hubert Dreyfus foi um filósofo que deixou como legado uma interpretação de conceitos da fenomenologia advindos de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty aplicados à inteligência artificial. Descobrir os conceitos da fenomenologia por meio dos ensinamentos desse filósofo é uma aventura bastante interessante e rica, que promete subverter muitas ideias pré concebidas que possamos ter da nossa existência no mundo.

Fiz aqui uma seleção de vídeos em que Dreyfus comenta alguns conceitos fundamentais da fenomenologia, que podem ser úteis para quem deseja entrar nesse universo.

Gap sujeito-objeto

Neste primeiro vídeo, na primeira parte da entrevista (chamada Fenomenologia), Dreyfus comenta sobre os movimentos de Heidegger contra a distinção sujeito-objeto cartesiana. Para a fenomenologia, não há um abismo entre sujeito e objeto, ou um gap; sujeito e objeto precisam um do outro para existir. Como aprendemos sobre o mundo? Não é armazenando uma série de fatos em nossas cabeças. Nós aprendemos na medida em que vamos discriminando o mundo, e assim ele vai se descortinando para nós. Merleau-Ponty compara esse fenômeno a uma cidade que a princípio não conhecemos e então nos parece caótica. Na medida em que a experimentamos, na medida em que a conhecemos, nós nos apropriamos dessa cidade e passamos a ser capazes de caminhar, de nos localizar por ela. Não precisamos de modelos do mundo armazenados em nossas mentes porque o mundo é o melhor modelo de si mesmo, diz Dreyfus, em clara referência à frase famosa do roboticista Rodney Brooks, “The world is its own best model”.

Na parte chamada de Inteligência Artificial, Dreyfus comenta sobre a premissa equivocada da IA, que partiu da ideia de que armazenamos representações do mundo, e sobre como isso não poderia dar certo porque não é assim que humanos funcionam. Ele explica o frame problem na IA (mais ou menos aos 13′ do vídeo) e comenta sobre a dificuldade de incutir, nas máquinas, conhecimentos do senso comum.

Imagem do post: Sharon McCutcheon @ Unsplash

Sobre esse vírus que chegou chegando, a educação a distância e… nós nisso tudo

O início deste texto vai parecer um pouco catastrófico, mas eu vou fazer a pergunta que quero fazer: onde você estava quando o mundo parou, quer dizer, quando a quarentena começou? O que estava fazendo, ou prestes a fazer? Quais eram os seus planos?

Certamente, se estava vivendo, você estava agindo e também tinha planos. Estava para realizar algo, tinha expectativas, estava à espera de alguma coisa. Tinha acabado de começar a faculdade, quem sabe um emprego novo, ou esperava conseguir um; ou tinha finalmente comprado um tênis de corrida para correr a sua primeira maratona. Havia comprado passagens para a sua lua de mel? Será que estava prestes a casar? Ou ia comemorar o aniversário com uma festa modesta, mas que reuniria os amigos principais… ou estava para estrear uma peça de teatro, ou começar a se acostumar com a ideia do filho na creche. O coronavírus não perguntou o que estávamos fazendo: ele simplesmente chegou.

E, ao chegar, encontrou o mundo como estava: vamos combinar, estava meio de pernas para o ar. Tudo andava muito acelerado. Se não tínhamos nada de novo acontecendo, a vida estava “parada” demais; sempre muitas demandas e muitas entregas para fazer, sempre muito trabalho, muita gente para atender. Ou pouco trabalho, mas também pouca grana, ou quem sabe muito trabalho e pouca grana. Tínhamos tanto a resolver. Ainda temos! Mas o planeta pediu pausa. Como é que se age em um momento de pausa? A gente não sabe muito bem. A gente não está acostumado a viver de uma forma mais devagar, de uma forma diferente, em que dar conta de tudo parece impossível. E a gente sempre se pendurou nos nossos celulares, mas agora parece que em breve vamos nos cansar de olhar para eles, uau.

Esta reflexão pode ser estendida ao ensino a distância. Como? Bom, muito antes de o coronavírus chegar, vínhamos debatendo o ensino a distância. Não só debatendo: vínhamos trabalhando a educação a distância. Alguns com mais cuidado e cautela, outros querendo endereçar a coisa de uma maneira menos crítica, o que é preocupante. Muitas eram as perguntas que vínhamos fazendo, enquanto educadores, estudantes, responsáveis pelo processo de aprendizagem, pais de alunos. Funciona? Não funciona? Dá para aprender mesmo com ensino online? Dá para acompanhar os alunos? Dá para avaliar os alunos?

Quando o vírus chegou, as perguntas estavam todas sem respostas, e assim continuam. Mas será que esta não é uma oportunidade para debatermos até mesmo as perguntas que vínhamos fazendo sobre ensinar e aprender a distância? Há tanto a ser questionado antes mesmo dessas perguntas que coloquei aí em cima. Um exemplo: no Brasil, muitos alunos não têm uma conexão de internet capaz de dar conta de assistir aulas. Poderíamos nos perguntar: e agora? Com essa conexão, como eles vão assistir aulas? Mas também poderíamos nos perguntar se é mesmo necessário manter o mesmo esquema de aulas expositivas. Por que as aulas têm que ser assim? Ou por que não têm que ser? Como podem ser? O que podemos fazer?

Puxando um fio a partir desta última pergunta, eu enfatizaria o plural que ela envolve. Se tem uma coisa que o coronavírus tem é isso, de ser coletivo: ele é de todos, não está deixando ninguém tranquilo, e não é porque estamos isolados fisicamente que podemos ou devemos ou queremos realmente nos isolar. A situação pede coletividade, ação em rede; exige que se pense no comum. Será que sabemos fazer isso? De verdade?

Certamente, se é para agirmos de maneira conjunta, não se pode esperar que um professor que ainda não tinha se familiarizado com as tecnologias digitais, seja pelo motivo que for (muitos apenas deram aulas presenciais em sua vida até hoje…), de repente se acostume com elas e consiga trazer soluções mirabolantes. Não se pode esperar que todos os problemas de conexão sejam resolvidos da noite para o dia. Ou que questões ligadas ao chamado letramento digital façam PLUFT! e simplesmente sejam todas acertadas, equilibradas. Não se pode esperar que alunos fiquem todos tranquilos, como se nada estivesse acontecendo, e nem que consigam dar conta de estudar de uma forma mais independente de repente, se nunca antes o fizeram; que consigam se concentrar mesmo em meio aos irmãos menores brincando ou porque têm que cuidar deles, e nem vou repetir a questão da qualidade da internet. Não adianta tampouco esperar que pais consigam ser necessariamente bons em homeoffice e em apoiar o homeschooling ao mesmo tempo. Tudo isso seria fazer mágica, não viver; seria ir contra o tempo de uma maneira que não podemos ir, pois, até que se prove o contrário, o vírus fez a gente diminuir o ritmo, e não aumentar. Então, o que não estava resolvido antes, não será resolvido de repente.

O que é que dá para fazer agora, seja você educador, responsável ou estudante (muitas vezes somos os três ao mesmo tempo)?

Já dei minha opinião sobre isso ali no alto, quando falei em coletividade: se tem uma única coisa que vai ter que mudar mais rápido é a nossa capacidade de avaliar o que conseguimos fazer, no caos, para colaborar. Se nada pudermos fazer, que ao menos não saiamos responsabilizando um lado só por uma coisa que envolve uma série de fatores em rede e uma coletividade. Vamos também respeitar quem está na educação há muito tempo e tem se empenhado constantemente para estudar e implementar caminhos? Essa também é uma atitude sensata!

Ficar revoltado porque a escola dos filhos não adotou aquela plataforma de inteligência artificial até hoje não vai adiantar nada; aliás, se quer um conselho de quem pesquisa o assunto, não temos comprovação de que isso funcione. Não vai adiantar nada também reclamar que cada professor do seu filho está agindo de um jeito x ou y: acredite, cada um está tentando fazer o melhor que pode, na velocidade que pode e com a criatividade e os recursos de que dispõe. Há trocas de ideia acontecendo e aulas e o vírus, e a vida rolando, tudo junto. Não está sendo assim com cada um de nós, afinal? Não estamos todos tentando reorganizar nosso tempo, nossas demandas? Também não adianta querer virar super mãe ou super pai, mais ainda do que já quer normalmente, e tudo bem não saber muito como lidar com a questão de os filhos estarem em casa e você também, cada um com sua lista de tarefas. Tudo bem não saber lidar com o que é novo, e aliás mesmo o que já não era novo como a educação a distância agora exige nova reflexão porque o contexto mudou!

E sim, é possível refletir e agir. Paralelamente. Ta aí uma coisa que o corona está ensinando.

É improdutivo ficarmos olhando para o que não podemos fazer. Coisa mais chata e frustrante é isso. Então, por que não olhar para o que podemos fazer? Podemos trabalhar nossa paciência, nossa calma. Podemos trabalhar nossa capacidade de agir juntos. Podemos ampliar a capacidade de ouvir, de nos abrir às ideias das outras pessoas. Repensar práticas, medos, preconceitos, por que não? Se tínhamos algo a perder, agora não temos nada, nadinha nesse sentido. É mergulho e ação; calma, mas não passividade. Podemos olhar para o nosso comportamento: será que podemos ser mais ativos? Mais atentos, mais curiosos, mais independentes? Podemos ajudar alguém? Sabemos pedir ajuda? Sim, é importante saber pedir ajuda! Se você é aluno, e eu considero que todos somos em algum sentido, pense que isso não tem a ver com aprendizagem ser a distância ou não: em todo processo de aprendizagem, sempre existem maneiras de o aluno ir se tornando mais independente e mais engajado. E também vale ser paciente para esperar ser ajudado; às vezes, a pessoa que vai te ajudar está também se preparando e já vai te responder. Somos os mais impacientes para receber respostas às nossas mensagens e aos nossos anseios, resolver os nossos problemas! E a quarentena ninguém nem sabe quando vai acabar, então… uau, que teste!

Porém, esta reflexão não será útil apenas para agora, mas para quando voltarmos à “normalidade”, que talvez nunca seja exatamente a mesma de antes. Tomara que não seja. Tomara que voltemos, claro, a nos encontrar e possamos ter encontros presenciais, o que desejo muito, pois não acredito que a educação a distância virá a substituir a “tradicional” – até por razões em parte parecidas com aquelas pelas quais não queremos só falar com nossos amigos e nossa família por vídeo (já estamos até meio cansados e foram-se apenas alguns dias). Os educadores, e nesse grupo me incluo, têm muito o que pensar e repensar sobre educação, educação a distância e a nossa postura diante de tudo isso. A distância na educação, aliás, demanda importante reflexão, seja na modalidade presencial ou online, que no fundo são dois lados de uma mesma moeda (post sobre isso aqui). E nós temos pensado e agido. E vamos seguir com nossos debates, nossas reflexões.

Antes que você diga algo como “poxa, mas a educação a distância está aí há tanto tempo, buscando uma solução, até hoje não encontraram?” lembre-se: não se trata de haver uma solução. A educação demanda perspectivas e caminhos, não uma única solução. Daí uma característica, aliás, das Humanidades; não somos de uma solução racional, única, que vai dar certo como A mais B. Entendemos que a educação envolve muitas questões, muitos problemas e diversas oportunidades. Geralmente, quem trabalha com educação trabalha muito e gosta muito do que faz, mas justamente por isso resiste a respostas pré-fabricadas e coelhos saindo de cartolas: quanto mais experiente o educador, mais ele sabe que isso não existe, aliás.

Temos um novo ingrediente: o senso de urgência em que a situação nos colocou. Mas não é com desespero, impaciência, cobranças absurdas e falta de sensibilidade que vamos chegar a algum lugar. Tudo indica que é com empatia, criatividade, compartilhamento e muito trabalho duro, e em conjunto. Quando algo assim chega… bom, não dá para vir com frases feitas, pois é a primeira vez que enfrentamos algo assim. As respostas que havíamos encontrado talvez tenham mudado, mas não é todo dia que as respostas mudam porque as perguntas também mudaram. Que excelente oportunidade temos nas mãos.

Imagem do post: Sharon McCutcheon @ Unsplash

Pontos de Interrogação em IA, machine learning e cognição humana – Parte 2

No primeiro post sobre as investigações que marcam os campos da IA, machine learning e cognição, comentei sobre o vídeo do Pedro Domingos sobre machine learning. Aqui, discuto um pouco do que ele falou, contrapondo com questões dos 4Es da cognição que venho pesquisando e também comentando aqui no blog:

“We’re actually now for the first time in history at the point where you could say you can have a supercomputer that is about as powerful as the human brain

Vamos olhar para este trecho: Domingos diz que atingimos, pela primeira vez, um ponto na história em que se pode dizer que poderemos ter um super computador quase tão poderoso quanto o cérebro humano.

Mas o que isso significa? O que significa ser tão poderoso quanto o cérebro humano? Se o cérebro humano é poderoso por fazer parte de um sistema dinâmico do qual participam nosso corpo com suas especificidades, o ambiente em que estamos inseridos, as tecnologias com as quais nos relacionamos e a sociedade de que fazemos parte, essa colocação dá muito o que pensar. Afinal, não é o cérebro sozinho que é “poderoso”, mas o sistema humano em interação com a natureza…

Vejamos agora este trecho:

“So the thing that is really holding us back is that we don’t understand well enough how, for example, learning works.

Neste trecho, Domingos diz que o que está impedindo a IA de ir mais longe é a falta de entendimento acerca de como o processo de aprendizagem acontece. Esse é o ponto (ou um dos) que leva a haver tanta pesquisa em cognição humana: ainda não se sabe como aprendemos e há muito o que se investigar sobre isso. Então, pode-se dizer que há algo em comum entre as investigações em machine learning e em educação: entender como o ser humano aprende. Se depender disso para que a aprendizagem de máquina avance, parece que isso ainda demora… 😉

If we were able to devise a learning algorithm that is truly as good as the one in the human brain, this would be one of the greatest revolutions in history. And it could happen any day at this point. At this point this is a problem that if we could solve it we solve all other problems. If I come up with a better machine learning algorithm, that algorithm will be applied in business, in finance, in biology, in medicine across the board”.

No trecho acima, o destaque vai para o desenvolvimento de um algoritmo que seria capaz de se sair tão bem na atividade de aprender quanto o cérebro humano. Mas será que a aprendizagem é mesmo algo que se deve a um algoritmo no cérebro humano? Como já reforcei acima, não parece ser o cérebro humano que aprende, sozinho. Se o nosso processo de estar no mundo, com um corpo, vivendo, experimentando, nos leva a aprender, como propõem as teses ligadas aos 4Es, como é que um algoritmo no cérebro daria conta disso tudo? Será que é mesmo assim que a cognição funciona?

Toda essa conversa levanta também questões como o que seria a inteligência humana, o que é aprendizado e o que a engenharia de software quer dizer quando afirma que um sistema aprende a partir de algoritmos – assuntos que pretendo explorar.

Pontos de Interrogação em IA, machine learning e cognição humana – Parte 1

Estou entrando no meu segundo ano de doutorado e agora estou focada em dois dos tópicos da minha pesquisa: 1) Estudar fenomenologia e pós-fenomenologia; 2) Estudar machine learning.

A minha pesquisa de doutorado é em filosofia da educação/filosofia da tecnologia, já que a minha inquietação é com as tecnologias digitais no contexto da educação. Tomo como base, porém, um referencial teórico menos comum nessa área que é o dos 4Es da cognição – um conjunto de teses e argumentos filosóficos que vêm sendo desenvolvido a muitas mãos por diversos pesquisadores que buscam entender como a mente humana funciona. Esses pesquisadores trabalham diversos tópicos relacionados à atividade cognitiva humana, como a percepção, a memória, a aprendizagem, a questão das representações, entre outros, levantando importantes questões ainda não resolvidas acerca desses elementos. Uma introdução bastante didática aos 4Es encontra-se no livro “A Mente Humana para Além do Cérebro”, que lancei em Portugal com outros vários pesquisadores em novembro de 2019, link para o PDF aqui.

Neste post, vou focar no segundo tópico de meus estudos atuais, o machine learning.

Uma pesquisa sempre parte de perguntas, já que nós, pesquisadores, desejamos ir em busca de respostas para alguma coisa. No caso da minha pesquisa de doutorado, ainda estou trabalhando para formular minhas perguntas, mas, a partir das inquietações que venho apresentando, posso dizer que a pergunta mais ampla seria como a inteligência artificial pode contribuir para a educação. Porém, essa indagação precisa ser lida de um modo mais amplo do que o da simples e imediata aplicação; não quero perguntar como a IA pode ajudar a educação partindo do pressuposto de que já ajuda (muito menos de que concentra todas as soluções), e que então precisamos entender como aplicá-la em sala de aula, mas um passo anterior, digamos assim. Como é que, entendendo a inteligência artificial e os questionamentos que ela suscita, nós podemos pensar sobre aprendizagem & tecnologias digitais? Quais as questões despertadas no âmbito da IA que, revelando aspectos da cognição humana, podem contribuir para pensarmos a educação, vista aqui de maneira mais ampla do que a sala de aula; a educação como aprendizagem de um modo geral, um estar-no-mundo baseado em um processo contínuo de aprendizagem?

Para ir em busca da compreensão de tais questões, cuja fundamentação é filosófica, neste momento estou em busca de compreender os desafios que impulsionam os pesquisadores da IA. O que eles querem encontrar? O que pretendem? O que sentem que falta nas pesquisas deles para que cheguem aonde desejam? Aonde eles desejam chegar?

Preciso, também, entender quais os cruzamentos que poderiam ser estabelecidos entre os questionamentos dos pesquisadores da IA e os questionamentos filosóficos para a tecnologia – uma vez que o aporte teórico que escolhi é aquele relacionado às abordagens cognitivas atuais, estou fazendo uma jornada rumo à fenomenologia, que trata de aspectos essenciais da percepção humana, do nosso estar no mundo, da forma como percebemos as coisas e agimos a partir de tais percepções; a fenomenologia é capaz de estabelecer um contraponto especial com a IA por vários motivos, entre eles por ir fundo nas questões do corpo, defendendo um estar no mundo corporificado que leva em conta as nossas características orgânicas de um modo muito particular e com muitas possíveis aplicações. Em breve farei um post sobre fenomenologia e um sobre pós-fenomenologia, a qual é bastante voltada para as questões específicas da relação humana com a tecnologia.

Em busca de questionamentos que marcam o campo da IA, buscando ampliar aqueles que já conheço superficialmente, tenho lido artigos e livros e recentemente ingressei num curso online da University of London disponível no Coursera que tem bastante material sobre o assunto – indicações de livros, links e vídeos. Foi como conheci o nome do engenheiro e pesquisador da IA Pedro Domingos, que neste vídeo (desculpem, é no site da IBM, que não permite embedar o vídeo aqui) resume um dos problemas que impulsionam a IA, hoje.

O vídeo diz o seguinte (segue a transcrição completa):

People often ask me – what’s the relationship between AI and machine learning and big data? Machine learning is the subfield of AI that deals with getting computers to learn. So you can think of AI as the planet that we’re going to, and machine learning as the rocket that will get us there, and big data as the fuel for that rocket.

There are many examples of AI and machine learning at work in the world today, that touch people’s everyday lives, but they aren’t even aware of it. For example, every time you do a web search, when Netflix recommends a movie, when Facebook selects posts, when Amazon recommends a book, it’s machine learning that’s doing that. Then there are people who apply machine learning and AI in things like robotics, and vision, and natural language processing, or medicine, or oceanography, or social science, you name it.

We’ve gotten very far in AI in the first 50 years. There’s a million miles more to go. So we’re going to need a lot of compute power that is specialized for things like machine learning. I think Intel has something very important to contribute to all of this which is at the end of the day, it all starts with the hardware.

Intel is in the leading position to bring us the hardware and the architectures to try to foster this open community that we really do need to make progress.

We’re actually now for the first time in history at the point where you could say you can have a supercomputer that is about as powerful as the human brain. So the thing that is really holding us back is that we don’t understand well enough how, for example, learning works. If we were able to devise a learning algorithm that is truly as good as the one in the human brain, this would be one of the greatest revolutions in history. And it could happen any day at this point. At this point this is a problem that if we could solve it we solve all other problems. If I come up with a better machine learning algorithm, that algorithm will be applied in business, in finance, in biology, in medicine across the board.

As partes em itálico na transcrição são marcações minhas. Vou falar sobre elas no segundo post que escrevi sobre isso, sigam-me se ficaram curiosos 😉

Imagem do post: Clarisse Croset @ Unsplash

Leia o próximo post:

Pontos de Interrogação em IA, machine learning e cognição humana – Parte 2

A Mente Humana para Além do Cérebro

Lançamento do nosso livro aconteceu em Coimbra em novembro

Estive em Coimbra, Portugal, para o Congresso Bem-Estar, Saúde, Cognição & Desenvolvimento, que aconteceu a partir de uma parceria entre o Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Humano e Social da Universidade de Coimbra e a Fundação Beatriz Santos nos dias 28 a 30 de novembro.

Na ocasião, apresentei uma comunicação intitulada ” Uma Reflexão sobre a Inteligência Artificial para Além da Mente Representacional”, além do pôster “A Mente na Inteligência Artificial”. Foram realizadas diversas palestras interessantíssimas e me senti muito privilegiada de estar ao lado de pesquisadores tão feras. Pude conversar com muitos deles e isso me ajudou a pensar em diversos aspectos essenciais para a minha pesquisa de doutorado.

No Congresso aconteceu, ainda, o lançamento do livro A MENTE HUMANA PARA ALÉM DO CÉREBRO – PERSPECTIVAS A PARTIR DOS 4Es DA COGNIÇÃO, escrito a muitas mãos. Sou uma das organizadoras e autoras da obra, ao lado dos professores Eduardo Santos e Ralph Bannell e da pesquisadora Elsa Rodrigues. Mais sete autores colaboraram. A capa foi feita por um artista incrível de Portugal chamado Seixas Peixoto. O livro resulta do trabalho que temos realizado no E-Minds Lab, um grupo de estudos e pesquisas da Universidade de Coimbra do qual faço parte há cerca de dois anos. E está disponível em PDF neste link.

Foi lançado também o livro BRINCAR: DO CONCEITO ÀS PRÁTICAS, dos professores Ana Cristina Almeida e Eduardo Santos.

Que venham muitos projetos mais em 2020. É trabalhando que a gente resiste às intempéries deste nosso país e do mundo. Avante! FELIZ ANO NOVO A TODOS!