Neste final de ano pandêmico, em que apesar das dificuldades tenho muita coisa a agradecer, tenho me sentido flutuando. Não sinto meus pés no chão, parece que há uma eterna névoa, quase posso vê-la e tocá-la;
É uma espécie de camada de uma fina poeira entre Eu e o mundo, que se coloca como uma fase a mais a mediar o estar-no-momento-presente, o estar–no-mundo, o mundo da doença, um mundo desconhecido;
A pandemia, tão real, por vezes parece o mais irreal possível, porque é real e irreal; irreal porque nos é estranha, e o que é estranho ainda não surge, de fato, para nós, em toda a sua dimensão; surge aos poucos, na medida em que se torna parte de nós, e esse tornar-se parte se dá em etapas;
O contágio se dá sem que tenhamos a affordance de ver, tocar ou sentir; mas, mesmo aquilo que não vemos, ou que não tocamos, se torna algo para nós na medida em que se torna algo para todos, constitutivo do mundo;
As mortes se dão sem uma digna despedida, o que torna o impalpável ainda menos concreto e o superar das perdas uma tarefa de dar nó no invisível;
Com que materialidades lidamos? Como lidamos com uma não-materialidade (obscura)?
É um mundo do qual ainda não nos apropriamos e, quando nos faltam as habilidades corporais para estar no mundo de uma maneira situada, sentimo-nos como o sujeito cartesiano, morada de si mesmo, des-situado, des-vinculado, des-socializado, des-territorializado. Sujeito que se basta, com seu conhecimento internalizado;
Mas que na verdade não se basta de maneira alguma porque até para ser no mundo já precisamos ser situados, vinculados, socializados, territorializados;
O ser só é ser em movimento fluido e contínuo com outros seres, porque ninguém é só si mesmo, e quando é Si é também Outro: é Self, Outro e Mundo ao mesmo tempo. Ser não é sempre ser; ser é estar;
A cada momento, o que somos se transforma. Não é que se desfaçamos no ar como poeira; há uma essência que se mantém: é como a manutenção de uma canoa em alto mar, é preciso trocar cada tábua de madeira de uma vez, ou a canoa afunda, e ao final, mesmo que todas as tábuas tenham sido trocadas, ainda será a mesma canoa;
Neste mar de ondas altas que ainda não dominamos – e que, quiçá, não dominaremos – ainda assim aprendemos a surfar, utilizando-nos das ferramentas que até hoje nos ajudaram a surfar outras ondas. Porque é pela sobrevivência que trabalhamos;
É na direção do viver e do vem-a-ser que nossas mentes se orientam;
Mas este mar nos leva a um não-sei-onde que ninguém é capaz de revelar, o que se explica: pois não é algo que se revele como uma fotografia, já que o ente fotografado ainda não existe – é um devir; é mais um está-para-ser do que um ser;
Mesmo se o pano de fundo é um mundo em construção, porque é, somos todos também, individualmente, seres em transformação, como a canoa em reforma contínua. As tábuas mudam, mesmo que aos olhos não pareça que há algo acontecendo;
Nosso devir é o devir do mundo;
E não é que nos adaptemos às mudanças do mundo: essas mudanças são o que somos, não respondemos a elas como se dá uma resposta a algo que acontece, se recolhe algo que caiu, se enxuga algo que molhou, não, não é assim nossa relação com o mundo, apartada, responsiva; trata-se de um eterno acomodar, de um encaixe, de uma engrenagem de mil lados;
Estamos todos, em qualquer lugar que seja, ancorados num mesmo ponto de partida; o ponto de partida é inegável e a tudo recontextualiza, gerando uma reviravolta. E não há quem possa dizer “o caminho é esse, vamos por ali” porque o caminho não é visível, é névoa;
É claro que a ciência aponta direções, com base nas habilidades antes adquiridas e nos resultados até hoje conquistados, e a intuição, o afeto, se somam aos esforços médicos e científicos, num certo sentido que faz sentido. Mas o caminho precisa ser construído enquanto caminhamos, uma pedra após a outra, e assim aos poucos algo se concretiza e conseguimos ver o invisível e compreender o incompreensível;
De todo modo, se não devemos nos conformar jamais com o sadismo do não enfrentamento do Estado de uma doença do mundo que deixa os cidadãos à mercê em uma tempestade em alto mar, e isso vou pontuar mesmo que esteja aqui deixando desdobrarem-se pensamentos ainda inexistentes que surgem enquanto são pensados;
E, ainda, se não devemos nos conformar com aqueles que jogam água dentro do próprio barco em que estão navegando;
Devemos, por outro lado, nos acostumar com a materialidade do invisível, pois ela não é má:
O invisível é também amor e cuidado;
Percebamos: a materialidade desse amor e desse cuidado se tornou, justamente, a imaterialidade (do encontro, do Outro, e até de si mesmo; tendo um vírus mortal circulando dentro de Si, há quem não consiga se ver mais ali e vê o próprio Ser como não Ser; o intruso modifica o Ser e a percepção de Si; a pulsão da vida querendo excrementar o elemento da morte).
É fato que no invisível deu-se o ato maior de amor para com aqueles que precisam de cuidado; nesse caso, um invisível tão visível que desafia a visão pela visão. O invisível é, portanto, real.
O que ainda seremos é exatamente aquilo que nos define. O invisível do devir. Então, cuidemo-nos, lembrando: somos um ao outro, só somos com o Outro e pelo Outro. O Ser sozinho é um não-Ser.
*Este post foi escrito a partir de aprendizagens e inspirações oriundas do trabalho dos filósofos Ezequiel Di Paolo, Andy Clark, Evan Thompson, Maurice Merleau-Ponty, Hubert Dreyfus e Dan Zahavi, e das aulas e discussões com o professor Ralph Bannell.
Imagem do post: Paweł Czerwiński