A minha pesquisa de doutorado em inteligência artificial aborda esse tema a partir do seguinte ponto de partida: a inteligência humana. Na verdade, o ponto de partida é a ciência cognitiva. Essa é a área de pesquisa que se debruça sobre a maneira como os animais, não somente os seres humanos, funcionam. Investigações passam pela percepção, memória, como a gente consegue adquirir conhecimento das coisas, do mundo. Fazer sentido das coisas. Entender. Raciocinar, Tudo isso se refere à COGNIÇÃO humana.
A ciência cognitiva é uma área de pesquisa que se formou a partir da união de várias áreas. A neurociência, a biologia, a psicologia, a ciência da computação são algumas delas. A inteligência artificial começou a surgir como uma área de pesquisa mais ou menos na mesma época que surgiu a ciência cognitiva. E isso não é por acaso.
A pesquisa em IA surge inspirada pela maneira como o ser humano funciona, que é justamente o tema de pesquisa da ciência cognitiva. Só que a ciência cognitiva não tem somente UMA visão sobre como isso acontece. Existem várias hipóteses e várias correntes ou abordagens de estudo diferentes.
Existe uma vertente muito forte de pensamento que acredita que tudo que diz respeito à cognição humana está na cabeça, no cérebro. Se você olhar para o cérebro, vai conseguir entender a mente humana por completo. Se você reproduz o cérebro, você tem a mente humana, você reproduz a mente humana. Mas existem outras correntes de pensamento que defendem que não: a mente não se limita ao que a gente pode descobrir pelo cérebro. Ela não é o cérebro, somente, e não adianta estudar o cérebro inteiro que não vai dar para entender a mente humana assim.
Por quê? Porque a mente está conectada a elementos do ambiente, ao nosso histórico familiar, social, cultural, à nossa evolução individual e coletiva e às trocas que temos uns com os outros, ao corpo e tudo que ele faz a gente sentir, viver, experimentar e às nossas emoções, à nossa intuição etc. e ainda há muito a ser compreendido sobre isso tudo. É claro que o cérebro é fundamental para a mente, mas não adianta olhar só para neurônios localizados no cérebro para entender a totalidade da mente humana.
A IA, durante muitos anos, acreditou que daria para reproduzir a mente humana a partir do cérebro, e se debruçou sobre isso. Mas a própria robótica foi mostrando que a participação do corpo no ambiente é importante demais para ser ignorada. O cérebro não é um processador central que vai devorando tudo que recebe do entorno, enviando informações pro corpo e pronto, assim funcionamos. Muita coisa vem da ação do corpo no mundo, o corpo também envia muita informação para o cérebro. Antonio Damásio é uma excelente referência nisso.
Mas, e a IA nisso tudo?
Quando a gente analisa a IA pelo ponto de vista da cognição humana, a gente consegue entender alguns caminhos que podem ajudar a gente a compreender melhor o que é a IA. As limitações da IA nos ajudam, por outro lado, a entender o que a gente é, como a gente funciona, como a gente aprende.
O ser humano não precisa ver centenas de imagens de um cachorro para entender o que se trata de um cachorro. Pode ver apenas um cachorro e já entender, mesmo que seja uma criança muito pequena. Ela pode confundir gato com cachorro algumas vezes, mas… ela vai aprender a diferenciar os dois sem ter que decorar que um tem orelha assim e assado e outro daquele jeito. E ela vai entender que é gato ou cachorro mesmo que sejam de raças diferentes, que ela nunca viu. Já uma IA baseada em aprendizagem de máquina não funciona assim.
A IA precisa ter na sua base de dados muitas e muitas imagens para poder comparar e ir separando o que é gato e o que é cachorro. A IA não conhece contexto. A criança que está aprendendo pode, por exemplo, eliminar a possibilidade de que um animal seja um leão porque ele está em casa, e ela aprendeu que não é comum ter leão em casa. Ela usa vários critérios para avaliar uma situação, para fazer sentido da situação. Contexto, senso comum , intuição e experiência ajudam nisso.
E então eu fui estudar as abordagens para a cognição humana que não resumem a mente ao cérebro. E elas me ajudaram a enxergar uma nova maneira de abordar a IA. Porque a gente olha para a IA já com uma perspectiva de quem entende que o ser humano tem certos atributos na mente dele que não podem existir num sistema que só é bom em reproduzir o cérebro humano! Pois é, a IA é baseada em redes neurais. O conexionismo, que é a base da aprendizagem de máquina, é essencialmente redes neurais artificiais. Elas se baseiam nas redes biológicas.
A minha pesquisa ajuda, então, a gente a separar o que a aprendizagem de máquina faz daquilo que os seres humanos em processo de aprendizagem podem fazer. Isso não é importante somente para a educação. Porque eu estou falando de aprender sobre tudo, o tempo todo; aprender sobre o mundo. O ser humano aprende sem parar, não na sala de aula, só. Como funciona essa aprendizagem?
Ao entender um pouco sobre a cognição humana, podemos entender as limitações da IA no contexto das nossas vidas, e também as potencialidades dela. Fui taxada de pessimista algumas vezes, mas não me vejo assim. Porque eu consigo enxergar com clareza aquilo que é típico nosso, de animais, de seres humanos, e essas características, quando nós as estudamos em profundidade, fica claro que não estão perto de ser reproduzidas pelos sistemas artificiais.
Na verdade, mais do que isso, eu pesquisei premissas. Ou seja, a IA, mesmo que se desenvolva MUITO, deixará de fora alguns atributos que nos tornam quem somos. Que atributos são esses? Como poderíamos não estudá-los, se queremos entender os impactos da IA nas nossas vidas, na nossa criatividade, no nosso trabalho?
Não dá para evitar a discussão
Alguns preferem evitar a discussão sobre a cognição, até porque ela é parceira da filosofia. A filosofia faz perguntas difíceis sobre o ser humano, a mente, o conhecimento. A gente tem que encarar essas perguntas se não quiser ficar no superficial. O que é a mente? O que é a cognição? Como a gente aprende? Como a gente escreve? Como cria? Como se movimenta?
Se a gente quer entender o que o Chat GPT pode fazer por nós, como a gente vai evitar estudar como é que a gente escreve? De onde vem a linguagem? A criatividade?
Então, no doutorado eu não estudei os usos de tecnologias digitais na educação, apesar de trabalhar com isso há anos, desde 2007. Eu me aprofundei no estudo da cognição, da mente, para entender do que se trata a IA e para entender a aprendizagem humana a partir de perguntas sobre a IA. A partir da minha pesquisa, cheguei a uma argumentação muito interessante sobre como a interação entre seres humanos é diferente da interação entre um humano e um bot. Claro que sabemos que é diferente, mas por quê?
Existem vários detalhes nisso, que se relacionam exatamente com a nossa cognição, e nos ajudam a entender por que o chat pode no máximo simular uma conversa. Mesmo que a IA passe no Teste de Turing, isso não significa que ela tem consciência, que pode criar algo, desenvolver.
Se você não sabe o que é o Teste de Turing eu posso te contar, ou você googla, porque agira é bem famoso. Se quer saber mais sobre isso tudo, estamos juntoas: o doutorado acabou, mas a minha pesquisa está longe de terminar. Quando é a hora de parar de pesquisar como os seres humanos aprendem? Acho que nunca, porque ainda tem tanto que a gente não sabe. E, quanto mais a gente descobre, mais vai mudando a nossa percepção sobre a maneira como a IA afeta as nossas vidas.
Então, hoje, com certeza, posso dizer que sistemas de IA não vão fazer o que seres humanos fazem, nao importa o quanto eles evoluam. É uma premissa. Eles não têm certos atributos que serem humanos têm.
O que me faria mudar de ideia?
Descobrir que na verdade os seres humanos funcionam de outra maneira. De uma maneira diferente da que acredito hoje, e que não é mera crença infundada, mas deriva da minha pesquisa. Ou seja, a minha percepção sobre o humano é que teria que mudar para eu acreditar na superação da IA sobre nós. Não o contrário.
P.S.: Vamos aproveitar e evitar ficar robóticos, porque assim fica mais fácil de a IA copiar a gente. Mas isso é assunto para outro texto, acho.