Comercial da Volkswagen levanta questões filosóficas (quer queira, quer não…)
A primeira coisa que pensei quando vi o comercial da Volkswagen com a Elis e a Maria Rita foi: bom, a Maria Rita aprovou isso ; se ela aprovou, será que gostou do resultado? Fui procurar saber e sim, ela gostou, acha até que “realizou um sonho”.
O fato de ela ter gostado é, para mim, um dos sinais importantes a serem observados quando se trata de analisar a IA nas nossas vidas. A Elis foi sua mãe. A Maria Rita não poderia se sentir lesada ou triste de novo, já perdeu a mãe, ainda que há mais de 40 anos, então esse comercial tinha que ser algo bom para ELA, principalmente.
Respeitar as emoções que a IA origina é, eu defendo, um dos fatores mais relevantes quando se trata de ética na inteligência artificial. Não à toa se estuda até mesmo se as IAs podem “demonstrar” ou ” interpretar” emoções. Elas são importantes nos comerciais, também. E, claro, para os espectadores.
Um caso em que ambas as pessoas há tivessem morrido, e aí fizessem um comercial com elas usando IA, seria mais complicado. Quem poderia dizer se essas pessoas gostaram disso ou o que sentiram?
Aliás, vocês já viram o primeiro episódio da última temporada de Black Mirror na Netflix? Vale assistir. Vários questionamentos que estão lá já batem à nossa porta aqui, na “vida real”. E têm a ver com esse vídeo da Elis e da Rita.
Alguns dos livros e artigos que usei como base são estes:
DI PAOLO, E. A., BURHMANN, T. E BARANDIARAN, X, E. Sensorimo-tor Life. An Enactive Proposal. Oxford: Oxford University Press, 2017.
DI PAOLO, E. The Enactive Conception of Life. In: NEWEN, A., DEBRUIN, L. & GALLAGHER, S. The Oxford Handbook of 4E Cognition.Oxford: Oxford University Press, 2018
DI PAOLO, E. A.; CUFFARI, E. C. & DE JAEGHER, H. Linguistic Bodies.The Continuity between Life and Language. Cambridge: MIT Press, 2018.
DI PAOLO, E., ROHDE, M. & DE JAEGHER. Horizons for the EnactiveMind: Values, Social Interaction, and Play. In: Stewart, J., Gapenne, O. e DiPaolo, E. Enaction – Toward a New Paradigm for Cognitive Science. Cam-bridge: MIT Press, 2010.
DREYFUS, H. What Computers Still Can’t Do. MIT Press: New York, NY,USA: 1992.
DREYFUS, H. Skillful Coping – Essays on the phenomenology of everydayperception and action. Oxford: Oxford University Press, 2016
Quadro colaborativo feito durante a apresentação:
Para quem quer saber mais sobre Hubert Dreyfus, recomendo a leitura deste meu post:
Estudar a aprendizagem humana e a inteligência artificial foi algo que levou a valorizar ainda mais as experiências genuinamente HUMANAS. Existe algo que é exclusivo nosso e que é a capacidade de SENTIR, de experimentar, de vivenciar na pele cada momento vivido. Conhecemos texturas, gostos, sabores, cheiros e sensaç˜ões – que podemos considerar boas ou más. Máquinas não sentem. Não experimentam nada, de fato. E esse foi um dos pontos mais importantes que explorei na minha pesquisa.
A experiência é um aspecto essencial da aprendizagem humana. Justamente porque experimentamos é que aprendemos; cada habilidade que vamos desenvolvendo fica entranhada em nós, e é sentindo que vamos conhecendo o que está no nosso entorno e adquirindo mais e mais habilidades. Percebo que gosto de me desafiar. Estar em lugares desconhecidos, com pessoas novas, fazendo coisas diferentes e até viver situações não tão confortáveis são elementos que levam a grandes aprendizagens. Acho que além de ser viciada em desafios eu sou viciada em aprender. Por isso esse meu entusiasmo tão grande por VIAJAR.
Acho interessante que a minha pesquisa de doutorado tenha me levado além do que era esperado; isto é, desenvolvi conhecimento em determinada área, sim, claro mas, mais do que isso, eu adquiri “na pele” a dimensão de como a experiência humana é que nos diferencia dos sistemas artificiais. Um tratamento especial da experiência faz parte das teses que investiguei, pertencentes ao enativismo e à cognição corporificada. Mas o toque principal foi dado pelas próprias vivências que tive enquanto fazia a minha investigação de doutorado. Elas me fizeram refletir muito e acabaram compondo o resultado final que está na minha tese.
Um dos grandes desafios para a indústria da robótica é a sofisticação dos movimentos humanos.
O nível de refinamento dos movimentos que os nossos corpos são capazes de fazer é altíssimo, e parece algo que já vem “embarcado” em nós.
É ainda muito pequenos que começamos a engatinhar, segurar objetos e desenvolver, assim, essa interação corporificada com o mundo a nossa volta, que só evolui mais e mais.
Movimentos simples para humanos podem ser complexos de ser reproduzidos em robôs. Essa questão difícil é conhecida como PARADOXO DE MORAVEC, em referência ao roboticista Hans Moravec.
Também é difícil exigir de robôs que “compreendam” o contexto das interações. Por isso o senso comum é um desafio para a indústria robótica. Isso transparece até quando testamos o Chat GPT. Senso comum não é o forte.
O artigo que escrevi e submeti para a Revista Portuguesa de Educação, intitulado “O que os computadores continuam não conseguindo fazer, 50 anos depois: A aprendizagem sob a perspectiva da fenomenologia do cotidiano de Hubert Dreyfus”, foi publicado neste link.
É uma grande satisfação ter um artigo publicado nessa revista, que é muito bem conceituada na área da Educação. Vejo o filósofo Hubert Dreyfus como um precursor de ideias da abordagem chamada de cognição enativa, que é a base da minha tese de doutorado. Aqui no blog já escrevi sobre ele – releia os posts:
Dreyfus fez críticas muito pertinentes à inteligência artificial quando a área estava ainda nascendo. Eu amo o trabalho dele. Por conta disso, quis fazer um artigo que fosse também uma espécie de homenagem. Por isso esse título, que ficou bem “jornalístico” – sou de fato jornalista, e afinal a identidade da gente se transforma, mas a essência permanece 😉 “What Computers Can’t Do” é o título de um livro de Dreyfus lançado em 1972, mas que mobiliza até hoje a atenção dos interessados em cognição e IA. Quando me dei conta do “aniversário” de 50 anos do livro (e eu ainda fiz 40 anos em 2022, nasci em 82 haha coincidências), fiz questão de que fosse publicado ainda este ano e corri para enviar para a revista. E eis que o artigo saiu faltando um dia para o ano acabar!
Neste post, faço uma espécie de leitura comentada do ensaio acadêmico que publiquei na Revista Perspectiva Filosófica e está neste link para quem quiser acessar. É um trabalho sobre os impactos à nossa autonomia quando lidamos com sistemas de aprendizagem de máquina – uma vertente da inteligência artificial.
As tecnologias digitais, de tão entranhadas que estão em nosso cotidiano, vêm sendo apontadas como extensões da mente, sendo consideradas capazes de potencializar a cognição humana. A chegada das tecnologias baseadas em algoritmos, por outro lado, traz uma série de elementos novos para essa equação. Elas são impulsionadas pelos próprios dados dos usuários dessas tecnologias, já que, no caso da aprendizagem de máquina por exemplo, operam fazendo previsões a partir de dados obtidos e assim sucessivamente.
Neste trabalho, eu argumento que, justamente porque essas tecnologias se baseiam em dados do usuário para gerar novos conteúdos, elas acabam criando uma circularidade em torno dele que, em vez de expandir, pode limitar sua experiência de aprendizagem. No centro desse impacto está a autonomia, que, em vez de ser ampliada, acaba sendo ameaçada de redução.
É importante explicar que o conceito de autonomia que utilizo é o conceito que deriva da chamada teoria da cognição enativa. Existem várias formas de conceituar autonomia, portanto no caso de um trabalho acadêmico de pesquisa é fundamental esclarecer isso. Trata-se de um conceito de autonomia que deriva da ideia de que a célula, unidade primordial da vida, somente é capaz de ser e se manter autônoma porque está inserida em um contexto que permite isso – um ambiente com o qual mantém trocas constantes que a alimentam energética e materialmente. Ou seja, a célula é autônoma, não capaz de se manter sozinha. Pelo contrário, sua autonomia se origina justamente das suas interações com o meio, o que torna essas interações essenciais para a manutenção da autonomia celular.
Eu “estiquei|”esse conceito até o ambiente algorítmico que se constitui em torno de nós, humanos. Fiz esta pergunta: o que acontece com a nossa autonomia quando o meio é aquela que chamei de algoritmosfera, essa rede entrelaçada por algoritmos e dados que nós alimentamos e que, ao mesmo tempo, também nos alimenta? Nós conseguimos nos manter autônomos diante desse contexto, embebidos nessa rede de interações que têm essa natureza?
O meu objetivo geral, com isso, é compreender os limites e as potencialidades das nossas relações com sistemas de aprendizagem de máquina para entender se eles podem nos ajudar nas nossas experiências de aprendizagem sobre o mundo ou se esses sistemas acabam por retrair essas experiências. Ao me debruçar sobre esse trabalho, explorei as diferenças por vezes aparentemente sutis, mas sempre muito potentes, entre lidar com outro ser humano ou com um sistema de aprendizagem de máquina. Quando lidamos com outra pessoa, aprendemos com ela, percebemos o mundo com ela, e isso altera as nossas percepções. Existe algo que surge das interações entre seres humanos que é único e típico dessas relações, e não poderia surgir fora delas. É algo novo, imprevisível. É o produto da interação.
Quando lidamos com máquinas, por mais que elas nos façam sentir como se estivéssemos lidando com outra pessoa às vezes, de tão avançados que estão esses sistemas, nós não estamos. O que acontece é que nesses casos nós acabamos “levando” toda a “relação” sozinhos; não há uma real interação social, como há entre dois seres humanos. As relações de troca humanas são como uma dança, em que o par se movimenta junto, enquanto as interações com sistemas artificiais se parecem com um monólogo ou uma dança desequilibrada em que apenas um se movimenta e o outro faz um papel parecido com o de um fantoche.
Com isso, não se pode dizer que não aprendemos nada ao lidar com sistemas de aprendizagem de máquina, mas sim que não é uma experiência comparável à que temos quando lidamos com outro ser humano. Isso, para quem procura compreender a aprendizagem e como ela é impactada pelas tecnologias, é essencial. O enativismo, ou cognição enativa, não diz que aprendemos mais ou melhor com outros seres humanos, mas que somente aprendemos de fato com outros seres humanos. Somos moldados, impactados, alterados, percebemos o mundo e raciocinamos sobre ele justamente a partir das interações com outras pessoas; precisamos delas para ter experiências de aprendizagem. Máquinas ou sistemas artificiais não aprendem de fato e não conseguem, sozinho/as, proporcionar experiências de aprendizagem.
A nossa autonomia é ameaçada, sob o ponto de vista de autonomia no enativismo, porque as trocas que mantemos com o meio “algorítmico” constituem um desequilíbrio para as nossas interações. É como se a contribuição de um e de outro lado fosse tão irregular que tornasse a relação “capenga”. Eu entro com meus dados, minhas percepções, minha imaginação; a máquina não percebe e não cria nada, e assim, tudo que parece novo ao surgir dali é mais limitado do que seria se eu estivesse lidando com outra pessoa. Porque outra pessoa é capaz de ciar, imaginar, porque tem experiência e aprende, e então dessa interação social se origina algo que só pode existir porque se trata, justamente, desse tipo de interação. É algo então que, por definição (enativista), potencializa a minha capacidade de experimentar o mundo de um modo especial porque é impossível de ser previsto na totalidade. Não há estatística que possa prever que conversa exatamente teremos com um amigo ao encontrá-lo, por exemplo; ou como o ser amado vai reagir a uma contestação que manifestarmos; ou se acabaremos falando de cinema quando nos encontrarmos com alguém para falar de matemática.
Essa é uma ideia interessante para defender por que não é viável pensar que uma aula 100% a distância, assíncrona, ou seja, sem o professor em contato com alunos em tempo real, poderia resultar no mesmo nível de experiência de uma aula presencial – ou, pelo menos, em que o professor e os alunos estejam no mesmo momento, se olhando, ainda que mediados por suas câmeras. Há algo nessa conexão entre as pessoas, alimentada pelas trocas daquele momento, que é único, e faz parte da série de novidades que emergem da interação. Há experimentos com bebês mostrando que eles choram quando diante de um vídeo gravado da mãe, depois de demonstrarem calma quando veem um vídeo da mãe que é uma transmissão em tempo real. O problema não é ser uma imagem, mas a mãe não estar olhando para ele, interagindo com ele na medida da própria interação. Não é fascinante?
Num mundo em que as relações são postas em xeque, por inúmeros motivos, e em que contamos tanto com sistemas artificiais para fazer um sem-número de atividades, é fundamental não esquecer que há algo intrínseco às trocas humanas. Algo que gera algo que só existe a partir dessas relações. Se só “falarmos” com máquinas, estaremos como que batendo num muro, um bate e volta; sentiremos algo, poderemos até aprender algo ou muitas coisas, mas não continuaremos a expandir os nossos horizontes, o alcance das nossas experiências, como faríamos se estivéssemos em interações sociais. Só elas ampliam os círculos de experiências mais e mais. Por isso chamei o ensaio de “Another brick in the wall” e digo que precisamos fazer um esforço para olhar entre os tijolos do muro. São as frestas que nos mantêm abertos a uma série de experiências inesperadas, essenciais justamente porque são inesperadas; nós não vivemos sem surpresas, sem o incerto, mesmo quando queremos o “certo”. Aprendemos na inconstância e na flexibilidade, não na dureza dos muros.
Foi publicado num dossiê temático da Revista Perspectiva Filosófica um ensaio meu intitulado “Another brick in the wall – Threats to Our Autonomy as Sense-Makers When Dealing With Machine Learning Systems”. A tradução em português (que acabou saindo um pouquinho diferente na revista) seria algo “Mais um tijolo na parede – Ameaças à Nossa Autonomia como Sense-Makers quando lidamos com sistemas de aprendizagem de máquina”.
Ter esse ensaio publicado significa muito. Não somente porque uma publicação acadêmica é sempre algo de muito valor para nós que batalhamos para tocar as nossas pesquisas para a frente, mas porque nele eu elaboro uma parte importante do argumento que está presente na minha tese. Ela foi já entregue à banca e a defesa será em janeiro de 2023. Também é uma publicação importante porque está numa edição especial da revista que é dedicada à Fenomenologia, à Cognição e à Afetividade – justamente os temas tratados na minha tese. E, como se não bastassem todos esses motivos de alegria, meu trabalho está publicado ao lado de outros assinados por grandes pesquisadores nessas áreas.
Para quem não conhece bem os trâmites, publicar um artigo numa revista cientifica exige escrever e submeter o trabalho à avaliação anônima de pareceristas que podem ou não aprová-lo para ser publicado. Podem também aprovar, porém sob a condição de que o autor faça certas modificações. Eu recebi sugestões ótimas para o meu, e procurei acatar todas as que achei pertinentes, num processo que foi muito rico para mim.
Optei por escrever o ensaio em inglês porque quis abri-lo a pesquisadores consagrados que não falam português. Porque quis me inserir num debate que está ainda mais forte fora do Brasil. Mas explico as ideias ali presentes na tese, até com mais detalhes, e em breve quero fazer uma tradução dele para postar aqui no blog.
Agradeço a todos que me apoiaram para que essa publicação acontecesse e à Revista Perspectiva Filosófica pela oportunidade e privilégio de estar nesse dossiê. Para ler a revista e o artigo:
Conheça os três tipos mais comuns de machine learning ou aprendizagem de máquina:
Aprendizagem Supervisionada: neste caso, o sistema recebe não apenas dados para operar, mas dados já classificados de uma determinada maneira. O sistema recebe também esses rótulos e precisa, então, encaixar os dados neles. É se fosse um quebra-cabeças. Quando a gente tenta acessar um site e ele, por segurança, pede para marcarmos todas as imagens em que aparecem montanhas, por exemplo, estamos diante de um sistema assim. Também é o caso da classificação de e-mails como #spam: cria-se um conjunto de e-mails que são spams e treina-se o sistema para identificar quais são as características mais comuns nele; ele poderá então classificar e-mails nunca vistos como spam a partir desses elementos identificados em outros e-mails.
Aprendizagem Não Supervisionada: neste tipo, o sistema não tem as classes previamente definidas. Ele precisa criar os rótulos para os dados. Para isso, o próprio sistema deve identificar padrões no big data. Por exemplo, utiliza-se esse tipo de machine learning para inferir padrões de consumo nas pessoas e depois lhes oferecer produtos e serviços de acordo com o comportamento e as preferências demonstrados.
Aprendizagem por Reforço: o sistema tentará usar os dados que recebe para gerar modelos, na base da tentativa e do erro. Depois, será punido ou recompensado de acordo com aquilo que conseguir “fazer”. Este tipo é muito comum na robótica e nos games. É o tipo usado no AlphaGo.
Esta semana, a internet chacoalhou com a notícia de que, segundo um funcionário da Google, o chatbot LaMDA, produzido pela empresa, seria senciente. O funcionário acabou afastado depois de suas declarações. O interessante é que uma discussão que está tão presente na filosofia veio à tona por conta disso tudo. Então, o que é que está por trás de desse debate?
A ciência cognitiva é uma área que vem crescendo desde os anos de 1950, e eclodiu bem perto da explosão também da inteligência artificial enquanto área de pesquisa. No início, a IA tinha como foco reproduzir as capacidades humanas. E não era tão difícil crer na viabilidade disso, porque se acreditava que o cérebro poderia ser feito de qualquer material que poderia, de todo jeito, gerar uma mente. Então, teoricamente, um “cérebro” de silício também seria capaz de dar origem a pensamentos, sentimentos, enfim, tudo que compõe a mente.
Com o passar do tempo, as experiências em IA e robótica mostraram que a coisa não era bem assim. Um pesquisador que ajudou a mostrar que a distância entre humanos e máquinas era grande, e que ainda haveria um longo caminho pela frente até que se pudesse instanciar a inteligência humana em sistemas artificiais, foi Hubert Dreyfus. Ele trabalhou no MIT bem próximo a cientistas da computação engajados nessas pesquisas. E era ele quem colocava questões que certamente irritavam os programadores, mas que eram certeiras!
Por exemplo: como um computador poderia prever as milhares de coisas que poderiam acontecer em dada situação da vida cotidiana? Nós conseguimos rapidamente mudar a nossa maneira de agir dependendo do contexto em que nos encontramos: se algo cai no chão, pegamos de volta, colocamos em cima da mesa; se algo se parte, colamos; se alguém se machuca ou chora de repente, vamos acudir. Já sistemas artificiais precisam de mudanças extensas e detalhadas em todo o seu código quando algo muda. Eles não compreendem contextos. Também não compreendem certos atributos simples da vida cotidiana, que fazem parte do senso comum. Tipo: quando atendemos ao telefone, dizemos alô – ou “tô”, se for em Portugal; a pessoa do outro lado responde; combina-se de sair para um bar em alguma rua perto da casa dessas pessoas. O computador precisa de mais do que um simples “Então, vamos lá hoje?” para “entender” o que se passa.
É que na verdade a máquina não “entende”nada, de fato! Todas as informações que as pessoas envolvidas na conversa vão conhecendo ao longo da vida e vão incorporando em seu repertório – o que significa alô, o que é um bar, onde ele fica, de que bar estão falando, o que significa vamos lá etc. etc. – o computador precisa receber como inputs (até mesmo a informação de que duas pessoas são pessoas, conversam ao telefone, o que é telefone, o que é conversar etc. etc., já pensou?!). Isso precisa estar na programação do sistema. E, mesmo assim, o computador efetivamente não saberá nada: ele vai manipular aquelas informações, mas elas não vão significar nada para ele.
E a filosofia no meio de tudo isso?
A filosofia é uma área que investiga a inteligência humana, a cognição, a mente, a consciência. Para isso procura, antes de tudo, entender como se pode compreender ou conceituar cada uma delas. A maneira como se conceitua algo, afinal, faz muita diferença para os debates. Para pensar se uma IA pode ser consciente ou não, se é senciente ou não, cabe perguntar: o que é ter consciência? O que é senciência?
Há pesquisadores, por exemplo, que buscam na biologia as raízes para se compreender a mente humana. Para eles, a mente é como uma extensão da vida; onde há vida há atividade mental. Consequentemente, onde não há vida não há mente. Também, se não há mente, não há sentimentos ou experiência. Por essa lógica, se robôs não são seres com vida biológica, não poderiam ter consciência ou senciência, nem sentir ou experimentar nada.
Esses pesquisadores acreditam, ainda, que a mente humana inclui muito mais do que o cérebro: o corpo como um todo constitui a mente. E é com a nossa atividade corporal, em acoplamento direto com o mundo natural, que vamos descobrindo e entendendo o que há no ambiente que nos cerca: assim é que fazemos sentido daquilo que está a nossa volta. Esses pesquisadores a que me refiro são estudiosos da cognição enativa. Alguns dos nomes mais importantes da área são Ezequiel Di Paolo, Hanne De Jaegher e Evan Thompson. Na minha tese de doutorado, eu abordo machine learning e enativismo. Se quiser saber mais, clica aqui.
Veja também o post especial no Instagram: @algoritmosfera
A inteligência artificial cada vez mais permeia e influencia nossas vidas. Afeta decisões das mais relevantes: quem pode conseguir um empréstimo ou financiamento, quem deve conseguir um emprego ou ser demitido, quem deve ser preso. Conecta indivíduos em apps de relacionamentos, podendo influenciar nos rumos sentimentais das vidas das pessoas, também.
Diante da presença crescente da IA em nossas vidas, cresce também a importância de compreender o que significa vivermos entrelaçados a sistemas que se alimentam dos nossos dados. Por isso, crescem as preocupações com os riscos a que potencialmente somos expostos.
Há uma mobilização enorme para que se analise esses riscos e para que sejam mitigados.
Nesse contexto, são preocupantes os mecanismos opacos de tomada de decisão embutida em sistemas algorítmicos.
Transparência é importante quando se trata de sistemas de #IA. A questão da transparência aparece nos documentos do AI HLEG – the European Commission’s High-Level Expert Group on Artificial Intelligence, de 2018.
“Os modelos de negócios baseados em dados, sistemas e AI devem ser transparentes: mecanismos de rastreabilidade podem ajudar nisso. Além disso, os sistemas de IA e suas decisões devem ser explicados de uma maneira adaptada às partes interessadas. Os seres humanos precisam estar cientes de que estão interagindo com um sistema de IA, e devem ser informados acerca das capacidades e limitações desse sistema”, diz documento do AI HLEG de 2019.
Vou mais além e defendo, com base em teorias da cognição em que venho me aprofundando no doutorado, que “interação” é humano-humano; quando lidamos com sistemas de IA temos uma troca, mas não é exatamente uma “interação” como seria uma interação social. Há algo que só humanos têm, ainda bem 😉
No artigo acadêmico disponível neste link, o qual inspirou este meu post, há uma discussão interessante sobre “variedades de transparência” em sistemas de IA. Foi escrito por Gloria Andrada, Robert Clowes e Paul Smart.