A Tese da Mente Estendida, desenvolvida pelo cientista cognitivo Andy Clark, sugere que a mente se estende para além do cérebro. O ambiente, as tecnologias, as instituições, as linguagens que criamos são todas formas de estendermos as nossas mentes. O próprio corpo é considerado extensão da mente também, sendo concebido, nessa perspectiva, como a primeira tecnologia cognitiva a que temos acesso durante as nossas vidas.
Mais do que apenas potencializar a cognição, esses recursos, externos ao cérebro e ao organismo humano como um todo, são vistos como constitutivos da mente; ela não existiria sem eles. A Tese preconiza, ainda, que a função de todos esses elementos é permitir um offload ou uma redução da carga da atividade cerebral; isto é, a partir da distribuição da operação cognitiva entre todos esses componentes, o cérebro não precisa ficar encarregado da atividade mental sozinho; em suma, não precisa ficar sobrecarregado. O exemplo mais clássico é o do celular que, ao guardar os números de telefone e tantas outras informações para nós, nos alivia de ter que memorizar tudo isso.
Críticos da Tese da Mente Estendida colocaram uma questão que, nomeada como cognitive bloat, se resume no seguinte: se a mente humana se estende por esses domínios externos ao organismo, e esses domínios incluem as outras pessoas, seriam então as mentes de outras pessoas consideradas também parte da mente de um determinado indivíduo?
Desde 2017, venho estudando essa Tese e as críticas a ela, além de outras perspectivas que guardam semelhança com a ideia da mente estendida. E acredito cada vez mais que sim, as mentes de outras pessoas podem ser extensões da mente de um determinado indivíduo. Isso não é necessariamente ruim. Afinal de contas, construímos juntos, criamos juntos, a inteligência é compartilhada. Muitas coisas que existem – projetos, ideias, famílias, conversas – somente existem porque são construções coletivas. E isso é ótimo.
Mas, para pensarmos assim, é preciso que todas as mentes envolvidas se beneficiem dessa espécie de expansão mental proporcionada por tais compartilhamentos. E nem sempre é esse o caso. Talvez, pelo olhar de uma mulher, eu possa contribuir com uma outra perspectiva hoje, neste 8 de março, dia em que se celebra o Dia da Mulher. E o olhar que quero trazer é o seguinte: seríamos nós, mulheres, extensões das mentes dos homens, tornando para eles tantas tarefas mais leves (ou reduzindo a quantidade de tarefas), enquanto nós seguimos sobrecarregadas – e sem ter para onde estender as nossas mentes?
Não faltam dados que mostram que essa hipótese é verdadeira. Historicamente, nós mulheres temos progredido em nossos direitos, alcançado lugares a que antes jamais poderíamos chegar e assumido posições também outrora impensáveis para o “segundo sexo” (obrigada, Beauvoir). Mas ainda temos um longo caminho pela frente, até porque, na não linearidade típica do fluxo da vida, retrocedemos (principalmente graças ao fascismo, diga-se de passagem) bastante nos últimos tempos.
Esse longo caminho ainda por vir anseia pelo fim definitivo da ideia de que mulheres são responsáveis pela casa e homens “ajudam”. Substitua a casa na frase por: os filhos, o cuidado com pessoas idosas e/ou doentes, as decisões sobre compras de mercado, sobre as prioridades domésticas etc. Muitas vezes, homens contribuem com a casa e os filhos, mas precisam que a mulher diga tudo o que precisa ser feito, caso contrário não tomam iniciativa alguma. Isso significa que por vezes as tarefas até são divididas, mas recai sobre a mulher o gerenciamento das coisas em casa.
Você já viu uma gerente ganhar menos do que a equipe a ela subordinada? Não. Tomar decisões é uma tarefa pesada e deveria ser reconhecida e valorizada; quase nunca é, no caso da mulher sobrecarregada (recomendo estes quadrinhos aqui para que quer um resumo perfeito disso).
Nós, mulheres, por mais que tenhamos a tecnologia para nos ajudar em nossas tarefas cognitivas (muitas delas são tecnologias que reproduzem os estereótipos e preconceitos, e que precisam de nós para ficar menos enviesadas), ainda tendemos a ser o “HD externo” de muitos homens, como bem colocou a Karla Fontoura no Planeta Ella no Instagram há alguns dias (@planetallea).
Acabamos tendo que contar com outras mulheres, que compreendam a nossa sobrecarga, para serem as nossas “mentes estendidas”. Formamos as nossas redes de apoio. Pedimos as nossas ajudas a quem acaba nos entendendo mais facilmente. Enquanto isso, boa parte dos homens segue recorrendo às mulheres para fazerem offload cognitivo; isto é, liberar-se de tarefas chatas e cansativas para que possam cuidar do que realmente interessa ou o que é divertido (seja o seu trabalho, sua pesquisa acadêmica, suas amizades, o futebol e por aí vai).
Em relações em desequilíbrio, sempre sobra para alguém; quando sobra para alguém, esse alguém deixa seus sonhos em standby, suspende os planos, deixa de seguir em frente para dar conta de algo que não deveria ser só seu. Para toda mulher que trabalha como mente estendida de um homem – no sentido que aqui expliquei como negativo – existe um homem acomodado que não se preocupa em sair dessa posição.
É muito válido e muito bonito dizermos que “fulana é meu braço direito”. Mas a reciprocidade é fundamental e temos que persegui-la sem cansar.
*Dedico este texto a todas as mulheres, especialmente às minhas amigas, e aos homens bacanas com quem trabalho e convivo diariamente e que sei que olham para essas questões. Tive a sorte de ter sido criada por um homem que me respeita, me incentiva e me estimula a ser quem eu quiser ser. Acredito, por causa do meu pai e desses homens bacanas, que podemos seguir sendo mentes estendidas uns dos outros no sentido coletivo, no sentido das trocas constantes, e não da sobrecarga feminina.