Notas sobre filosofia e ciência

Inspiradas especialmente (mas não somente) pela leitura de “Maturana e a Educação”, de Nize Pellanda, Editora Autêntica, 2009

“Quando o conjunto de teorias disponíveis numa época não dão mais conta de novos objetos da ciência, começam a emergir outras teorias que vão configurar um novo paradigma científico. Nesse conjunto, há sempre um grupo de pressupostos básicos e conceitos fundamentais que vai fazer o papel de urdidura de uma rede orgânica e coerente que é o paradigma”, diz Nize Pellanda, à página 13 do livro Maturana e a Educação (Ed. Autêntica, 2009). A autora esclarece que se refere, aqui, ao conceito de paradigma tal como concebido por Thomas Kuhn.

Essa explicação para o surgimento de novas teorias é simples: se precisamos estudar certos objetos, fenômenos, acontecimentos que fogem às teorias que temos disponíveis para compreendê-los, estamos precisando de… novas teorias. Apesar de simples, esse raciocínio esconde alguns aspectos, digamos, espinhosos no campo da pesquisa.

Por exemplo, a tentativa de “encaixar” novos objetos de pesquisa em velhos paradigmas ou o hábito de seguir analisando fenômenos científicos a partir de premissas que eventualmente já foram superadas ou precisam ser revistas/remodeladas. Sim, mesmo sem que se perceba, isso muitas vezes acontece. E a importância da pesquisa teórica passa por aí: a necessidade de conhecer a teoria para que ela sirva para a empiria de modo a abrir caminho para novas descobertas. Afinal, ao mudar os fundamentos, mudamos o que é construído sobre esses fundamentos. Lembrando que mudar os fundamentos não é jogar fora tudo que se sabe até dado momento para começar a construir tudo de novo, do zero, mas saber agregar o que é novo ao que se provou ser válido no “velho”.

Também na pesquisa ainda se observa, por vezes, uma certa insistência em fazer perguntas esperando uma determinada resposta (em vez de estar verdadeiramente aberto aos resultados que podem surgir). O pesquisador precisa topar o desafio de não saber bem onde chegará. Faz parte do show. Afinal, o caminho será construído durante a própria investigação que ele vai fazer; então, como saber o que será encontrado no ponto final? Claro, é preciso ter perguntas que impulsionem esse caminho e um método que sirva como guia; ter parâmetros, ter prazos, tudo isso é essencial; também é natural ter expectativas sobre as descobertas que serão feitas, e levantar hipóteses é mais do que recomendado; mas, sem uma real abertura ao novo, a pesquisa perde o sentido.

Ainda no citado livro sobre Humberto Maturana, um conhecido neurobiólogo chileno, a autora afirma que têm surgido objetos cada vez mais complexos no trabalho científico e que esses objetos desafiam as formas tradicionais de pesquisa. É difícil falar da importância da obra de Maturana sem mencionar esse fato, porque a proposta teórica desse autor emerge justamente do seu trabalho como cientista, que o leva a concluir que o mundo não é fragmentado e não é uma realidade à parte; o investigador faz parte dessa realidade, a constitui.

O neurobiólogo é um dos pensadores do chamado paradigma da complexidade – o qual supera a realidade concebida de maneira “linear, fragmentada como se fosse uma coleção de coisas e estável”, sendo o sujeito que estuda essa realidade sempre externo a ela (página 14 do livro Maturana e a Educação). Se não somos sujeitos externos à realidade que observamos e que desejamos investigar, somos parte dessa realidade; desse modo, nota-se que epistemologia e ontologia não se separam. Isto é, “observar faz parte não somente da geração do fenômeno a explicar, como também da própria ontologia de cada observador” (página 26 do livro Maturana e a Educação).

Estou levantando muitas questões para um post só, eu sei. É que o objetivo deste post é, justamente, fazer anotações para depois juntar tudo de alguma maneira num texto mais coerente (ou não). O processo de pesquisa também passa por isto, especialmente o processo de uma pesquisa teórica.

Neste caso aqui, ficam algumas questões importantes para possíveis discussões futuras:

  • A impossível dissociação entre sujeito observador e realidade observada torna impossível a “neutralidade” na pesquisa?
  • O que seria essa almejada “neutralidade” e qual seria a importância dela, se houver?
  • Por que não se pode separar ciência e filosofia, teoria e prática, humano e natureza, mente e corpo, epistemologia e ontologia?

E muitas outras perguntas mais.

Imagem do post: Photo by Moritz Kindler on Unsplash

A atitude filosófica, o jornalismo e o querer-saber

Como fica claro na área do Perfil do meu site, a minha graduação foi em jornalismo. Logo cedo na carreira, depois de dois anos de formada, me interessei pela educação enquanto área de pesquisa. Fiquei uns onze anos trabalhando em comunicação digital, educação a distância e tecnologias educacionais – projetos que me deram bastante experiência mas também me despertaram muitas questões – e em 2016 decidi que queria ir fundo nos estudos da educação.

Como sempre quis construir uma carreira acadêmica, decidi que o flerte (que durava desde quando me formei no bacharelado) deveria virar namoro; fiz a seleção do mestrado, passei e comecei a estudar as tecnologias digitais sob a perspectiva da Filosofia da Educação. Aí casei com a pesquisa: no doutorado, sigo na Filosofia da Educação fazendo uma pesquisa que tem como objetivo investigar a aprendizagem a partir de um contraste com machine learning. No meu trabalho, me utilizo de uma literatura e de uma série de conceitos situados em áreas variadas: ciência cognitiva, neurociência, filosofia, inteligência artificial, biologia, psicologia e outras.

A minha pesquisa é multidisciplinar como eu 😉 Coisa de gente curiosa mesmo.

Bem, mas este post se chama atitude filosófica e é sobre isso que quero falar aqui.

A atitude filosófica talvez seja um dos pontos mais importantes de conexão entre as duas esferas profissionais que tenho na vida: o jornalismo e a filosofia. Pois desde quando quis fazer jornalismo tomei essa decisão porque gostava de escrever e de ler, mas também porque me considerava questionadora, crítica – e por gostar de pesquisar. Sempre acho que todo assunto pode ser investigado e olhado sob outros ângulos; acredito que tudo é um recorte de algo mais vasto; gosto de pensar sobre os porquês das coisas; gosto de ouvir as histórias das pessoas (e de contar as minhas, mas aqui isso não vem tanto ao caso!).

Percebo, inclusive, que muitos jornalistas não têm (ou perderam) essa curiosidade, vontade de ir atrás das coisas, esse encantamento pela apuração. Admiro os jornalistas curiosos que se munem dessa vontade de saber para ir atrás das histórias, tentando contá-las da forma mais consciente possível.

Consciente acho que é uma boa palavra, porque a verdade sempre tem muitos elementos, aspectos e pontos de vista, e o jornalismo precisa dar espaço para eles, mas também deve respeitar a ciência e trabalhar para que as verdades científicas ganhem espaço. Também deve ter o bom senso de evitar dar espaço para aquilo que não ajuda uma sociedade a crescer e se desenvolver. Jornalismo, afinal, também é construção de uma sociedade melhor, mais aberta, democrática e plural; e eu defendo que isso não é negociável! Mas, enfim, o ponto aqui é: a atividade jornalística exige curiosidade, querer investigar, querer saber. Estar aberto ao que pode vir a encontrar.

A filosofia, por sua vez, também tem melhor aderência aos seres curiosos. A chamada “cabeça fechada” e a filosofia não se encaixam. Com a filosofia, a gente sempre pode questionar, sempre pode discutir as premissas. Não é um questionamento no vazio, sem eira nem beira; mas uma investigação que caminha lado a lado com a empiria, com a pesquisa prática. A filosofia e a ciência também caminham juntas, portanto. Ou, ao menos, a filosofia que tem me interessado é essa.

Debates epistemológicos vazios não me atraem, porque a minha pesquisa é filosófica mas também é fazer-ciência (assim com hífen que acho que encaixa bem com o que quero dizer). O que os pesquisadores que estou estudando fazem acaba levando a olharmos um pouco por baixo do tapete às vezes, e dizer: mas você viu que este tapete está sedimentado sobre estes tacos aqui, e estes tacos estão ruindo? Será que não é melhor trocar os tacos antes de continuar a caminhar? Se não trocar, a poeira vai se acumular entre o tapete e o chão… o chão vai ruir… e só vai restar o tapete lá em cima, que depois de um tempo não vai aguentar também.

Com isso, quero dizer que a gente precisa olhar para os pilares que sustentam as pesquisas empíricas, porque, veja: se determinamos que certas premissas são verdadeiras e seguimos fazendo pesquisas a partir delas, o que temos? Pesquisas que não conseguem se desvencilhar dessas premissas, que são os seus sustentáculos.

Quase nunca precisamos jogar tudo fora e recomeçar, mas quase sempre podemos rever parte de nossas convicções, e essa atitude de abertura, essa postura do querer-saber, é filosófica – e pode ser também jornalística, pode vir de um educador, de um psicólogo, um economista, um matemático, um biólogo, enfim, todos podem adotar essa atitude filosófica.

Portanto, não há nada assim de tão estranho em querer filosofar, não se trata de “viajar”, nem de complicar as coisas (bom, às vezes pode complicar, ou ao menos complexificar)… trata-se de levantar o tapete, e isso pode às vezes fazer a gente espirrar ou tossir, mas vale a pena. Afinal, em alguns casos a outra opção é a estrutura ruir!

Então, para começar a filosofar, é preciso ter interesse, curiosidade e ter olhar crítico; observar; topar uma aventura em que muitas variáveis irão se apresentar. Topar o diálogo, topar assumir que quanto mais sabemos, menos parece que sabemos.

Mas não há apenas uma porta de entrada para a filosofia. Começar pelos gregos pode ser bom quando se quer aprender história da filosofia, mas para aprender a ter uma atitude filosófica o exercício é o de saber ler e interpretar, flexibilizar, saber ouvir, se interessar por mais coisas do que cabem no seu “quadrado”. Aliás, aproveitar para “deixar de ser quadrado” também pode ser bom – quando a gente começa a se abrir mais, ouvir mais, a gente acaba fazendo isso naturalmente…

Para quem está se perguntando por que usei a imagem do filme “O lado bom da vida”, ou “Silver Linings Playbook”, no original…

… Bem, este post teve como inspiração uma aula de Filosofia da Educação ministrada pelo Professor Dr. Carlos Reis, da Universidade de Coimbra. Com muitos alunos da Psicologia (na UC Psicologia e Ciências da Educação estão sob o mesmo departamento), o professor levou a turma a pensar sobre atitude filosófica a partir do filme. Se não viu, veja com esse olhar. Vale a pena!

World WILD Web: é disso que precisamos

Precisamos de uma WWW democrática. Uma rede de conexões reais no espaço virtual.

Esta semana, recebi de diversas pessoas o vídeo que alardeia aquilo que na prática todos temos notado: a nossa navegação na Web é completamente rastreada pelo Facebook. Se você acessou um site e viu algo de que gostou mas não se lembra direito qual foi, esqueceu o nome etc, pode usar o histórico do seu navegador para reencontrá-lo ou… pode usar o histórico do Facebook. Vá em Configurações > Sua atividade no Facebook > Atividade fora do Facebook e verá que está tudo lá.

O Facebook está se tornando a própria World Wide Web, que não é mais tão vasta, ampla ou grande no melhor sentido da coisa e, diga-se de passagem, está cada vez mais chata, comercial e robotizada – no sentido literal. O que temos é um território mapeado, em que um chip com nossos logins (na forma de app do Facebook) funciona como uma espécie de arco íris que leva ao tesouro: nossos dados.

O problema nao está só no Facebook. Até porque ele está acompanhado da Amazon, Google, Apple. E alguns podem dar de ombros e dizer que esse rastreamento das lojas e sites que visitamos, em particular, pode nem ser tão preocupante, apenas irritante.

Mas é fato que, pela nossa sanidade, pela longa vida às artes, à filosofia, à política, ao cinema, às reais trocas de ideias, precisamos de uma internet democrática. Uma World Wild Web, isto é, uma Web “selvagem” no bom sentido, ampla de fato, democrática, capaz de se abrir à vastidão da natureza humana, dos nossos desejos e sonhos, ajudando-nos a criar e a fortalecer nossas reais conexões. Para usar esse termo busco como referência o pesquisador Edwin Hutchins, autor de Cognition in the Wild, este livro aqui. A ideia é a de analisar a cognição humana em seu habitat natural, a natureza, a cultura, as relações sociais, em vez de fazer isso apenas em laboratórios/ambientes controlados – o que poderia levar a uma dimensão bem mais fiel dos nossos processos cognitivos.

Penso enquanto escrevo numa Web que reflita as múltiplas realidades que vivemos, que se conecte melhor com o mundo que habitamos e que construimos todos os dias, em vez de apenas tentar construir esse mundo para nós – fazendo-o puramente devotado à venda, um palco em que se discute basicamente o que vale mais e quanto se quer pagar. Um mercado das pulgas em que as pulgas somos nós (isso é pior ainda do que ser as os cacarecos à venda – ou não…). Sim, eu sei que o mundo “real” também o coloca o capital acima de tudo, mas é exatamente por isso que precisamos mudar a Web (e o mundo) antes que o mundo que a Web tenha para refletir seja exatamente esse mundo chato e vazio como ela!

Um exemplo: para um músico “independente” – uma classificação que considero um tanto falha (por vários motivos) mas que apenas quer dizer no senso comum um artista que faz seu próprio percurso sem esperar as grandes gravadoras/o mainstream etc (o que acho louvável) – usar o YouTube para divulgar seu trabalho tornou-se praticamente impossível. Se tem dúvidas, converse com um deles e confira a odisseia que é ter um canal e conseguir alguns míseros seguidores., mesmo que você tenha uma carreira consolidada, muitos fãs, muitos shows no currículo e muitos álbuns lançados. As redes sociais que usamos são mainstream. Elas criam o seu próprio mainstream. O problema é que elas definem as prioridades e descartam o que não é prioridade para elas. Os “grandes” seguem “grandes”, com muitas aspas, e os “pequenos”… os pequenos que lutem.

Esse é só um exemplo. Se você nunca estranhou o alcance ínfimo de uma determinada publicação sua no FB quando esperava muitos likes, é porque provavelmente só posta gatinhos. O FB adora gatinhos. Aliás, aposto que Zucker fez algo de bom, pelo menos, que foi popularizar os gatos e fazer mais pessoas adotá-los, porque agora parece que todos têm gatos. O FB adora gatos porque as pessoas passam HORAS vendo vídeos de gatos.

Photo by Kim Davies on Unsplash

Voltando à Web democrática: ela era a ideia original de Tim Berners Lee, mas simplesmente não aconteceu. Mas ele não desistiu: Tim tem uma startup chamada Inrupt e está trabalhando por uma nova estrutura de rede, chamada SOLID. A ideia é repensar a maneira como aplicativos armazenam e compartilham dados pessoais. Para isso, em vez de armazenar dados em servidores de uma empresa que se interessa apenas em lucrar a partir deles, os usuários teriam um pequeno servidor exclusivo, localizado no Solid, um servidor grande. O problema dessa história é que ela parece levar ao problema do regresso infinito, isto é, Berners-Lee acabaria por ter os dados de todos armazenados em seu mega servidor com vários mini servidorezinhos; mas ele diz que não, que os dados estariam somente no servidor de cada um. De todo modo, as motivações de Tim me parecem sem dúvida melhores do que as de Zucker e sua turma, que não sabem mais onde colocar seu dinheiro. E continuam querendo faturar mais e mais às custas não apenas da nossa privacidade como do esvaziamento total da graça que a internet um dia teve, quando prometia ser a terra da criatividade que representava uma real alternativa ao caminho até então monótono do broadcasting.

Berners-Lee e o CEO (odeio estas siglas) da empresa dele – que não é ele, mas sim um cara chamado John Bruce – não esperam que o modelo descentralizado que estão tentando materializar desmorone as tech giants num passe de mágica, como bem lembra este artigo aqui da Wired. Até porque Zucker e os amigos não querem largar o osso carnudo dos nossos dados. O que a dupla Berners-Bruce quer é lançar uma alternativa, que possa se popularizar ao menos entre quem está preocupado com tudo isso que estou expondo neste texto e anseie por uma rede mais bacana, mais leve, aberta e criativa. Não sei exatamente como isso vai funcionar, se vai funcionar, mas esse caminho me parece bastante interessante e pretendo acompanhar. Sugiro que façam o mesmo. Até porque o problema não é apenas você gostar de hambúrguer com cheddar, e ficar toda hora aparecendo hambúrguer com cheddar para você nos anúncios na “sua internet”. O problema é que assim você vai viver num mar de hambúrgueres de cheddar com pequenas variações (com ou sem cebola…) em vez de conhecer um mundo que também tem hotdogs, pipocas doces, salsichas alemãs, saladas, pizzas ou seja o que for.

É bom pensar nisso antes que sua pressão arterial saia do controle.

(Imagem principal do post: amirali mirhashemian @ Unsplash)

É na direção do viver que nossas mentes se orientam*

Neste final de ano pandêmico, em que apesar das dificuldades tenho muita coisa a agradecer, tenho me sentido flutuando. Não sinto meus pés no chão, parece que há uma eterna névoa, quase posso vê-la e tocá-la;

É uma espécie de camada de uma fina poeira entre Eu e o mundo, que se coloca como uma fase a mais a mediar o estar-no-momento-presente, o estar–no-mundo, o mundo da doença, um mundo desconhecido;

A pandemia, tão real, por vezes parece o mais irreal possível, porque é real e irreal; irreal porque nos é estranha, e o que é estranho ainda não surge, de fato, para nós, em toda a sua dimensão; surge aos poucos, na medida em que se torna parte de nós, e esse tornar-se parte se dá em etapas;

O contágio se dá sem que tenhamos a affordance de ver, tocar ou sentir; mas, mesmo aquilo que não vemos, ou que não tocamos, se torna algo para nós na medida em que se torna algo para todos, constitutivo do mundo;

As mortes se dão sem uma digna despedida, o que torna o impalpável ainda menos concreto e o superar das perdas uma tarefa de dar nó no invisível;

Com que materialidades lidamos? Como lidamos com uma não-materialidade (obscura)?

É um mundo do qual ainda não nos apropriamos e, quando nos faltam as habilidades corporais para estar no mundo de uma maneira situada, sentimo-nos como o sujeito cartesiano, morada de si mesmo, des-situado, des-vinculado, des-socializado, des-territorializado. Sujeito que se basta, com seu conhecimento internalizado;

Mas que na verdade não se basta de maneira alguma porque até para ser no mundo já precisamos ser situados, vinculados, socializados, territorializados;

O ser só é ser em movimento fluido e contínuo com outros seres, porque ninguém é só si mesmo, e quando é Si é também Outro: é Self, Outro e Mundo ao mesmo tempo. Ser não é sempre ser; ser é estar;

A cada momento, o que somos se transforma. Não é que se desfaçamos no ar como poeira; há uma essência que se mantém: é como a manutenção de uma canoa em alto mar, é preciso trocar cada tábua de madeira de uma vez, ou a canoa afunda, e ao final, mesmo que todas as tábuas tenham sido trocadas, ainda será a mesma canoa;

Neste mar de ondas altas que ainda não dominamos – e que, quiçá, não dominaremos – ainda assim aprendemos a surfar, utilizando-nos das ferramentas que até hoje nos ajudaram a surfar outras ondas. Porque é pela sobrevivência que trabalhamos;

É na direção do viver e do vem-a-ser que nossas mentes se orientam;

Mas este mar nos leva a um não-sei-onde que ninguém é capaz de revelar, o que se explica: pois não é algo que se revele como uma fotografia, já que o ente fotografado ainda não existe – é um devir; é mais um está-para-ser do que um ser;

Mesmo se o pano de fundo é um mundo em construção, porque é, somos todos também, individualmente, seres em transformação, como a canoa em reforma contínua. As tábuas mudam, mesmo que aos olhos não pareça que há algo acontecendo;

Nosso devir é o devir do mundo;

E não é que nos adaptemos às mudanças do mundo: essas mudanças são o que somos, não respondemos a elas como se dá uma resposta a algo que acontece, se recolhe algo que caiu, se enxuga algo que molhou, não, não é assim nossa relação com o mundo, apartada, responsiva; trata-se de um eterno acomodar, de um encaixe, de uma engrenagem de mil lados;

Estamos todos, em qualquer lugar que seja, ancorados num mesmo ponto de partida; o ponto de partida é inegável e a tudo recontextualiza, gerando uma reviravolta. E não há quem possa dizer “o caminho é esse, vamos por ali” porque o caminho não é visível, é névoa;

É claro que a ciência aponta direções, com base nas habilidades antes adquiridas e nos resultados até hoje conquistados, e a intuição, o afeto, se somam aos esforços médicos e científicos, num certo sentido que faz sentido. Mas o caminho precisa ser construído enquanto caminhamos, uma pedra após a outra, e assim aos poucos algo se concretiza e conseguimos ver o invisível e compreender o incompreensível;

De todo modo, se não devemos nos conformar jamais com o sadismo do não enfrentamento do Estado de uma doença do mundo que deixa os cidadãos à mercê em uma tempestade em alto mar, e isso vou pontuar mesmo que esteja aqui deixando desdobrarem-se pensamentos ainda inexistentes que surgem enquanto são pensados;

E, ainda, se não devemos nos conformar com aqueles que jogam água dentro do próprio barco em que estão navegando;

Devemos, por outro lado, nos acostumar com a materialidade do invisível, pois ela não é má:

O invisível é também amor e cuidado;

Percebamos: a materialidade desse amor e desse cuidado se tornou, justamente, a imaterialidade (do encontro, do Outro, e até de si mesmo; tendo um vírus mortal circulando dentro de Si, há quem não consiga se ver mais ali e vê o próprio Ser como não Ser; o intruso modifica o Ser e a percepção de Si; a pulsão da vida querendo excrementar o elemento da morte).

É fato que no invisível deu-se o ato maior de amor para com aqueles que precisam de cuidado; nesse caso, um invisível tão visível que desafia a visão pela visão. O invisível é, portanto, real.

O que ainda seremos é exatamente aquilo que nos define. O invisível do devir. Então, cuidemo-nos, lembrando: somos um ao outro, só somos com o Outro e pelo Outro. O Ser sozinho é um não-Ser.

*Este post foi escrito a partir de aprendizagens e inspirações oriundas do trabalho dos filósofos Ezequiel Di Paolo, Andy Clark, Evan Thompson, Maurice Merleau-Ponty, Hubert Dreyfus e Dan Zahavi, e das aulas e discussões com o professor Ralph Bannell.

Imagem do post: Paweł Czerwiński 

Eis o Dilemma

Documentário “The Social Dilemma“, da Netflix, está dando o que falar. Ficou pessimista depois de assistir? Leia este post.

The Social Dilemma (O Dilema das Redes, em português), que aborda a manipulação de nossos dados pelas redes sociais online, traz depoimentos de pessoas que desistiram de trabalhar nas gigantes de tecnologia – Google, Instagram, Facebook, Pinterest e afins. Os entrevistados perceberam, pode-se dizer, que os valores das empresas em que eles vinham trabalhando não estavam mais de acordo com aquilo que eles acreditam, e resolveram tomar outros rumos na vida.

Mas, então, onde é que essas pessoas estão hoje? O que elas estão fazendo de suas vidas? E os outros entrevistados que aparecem no doc, quem são e qual tem sido o seu papel no universo da tecnologia? Muitos deles estão fazendo coisas bem legais, algumas bastante inspiradoras, que podem ajudar a mudar significativamente a nossa relação com a tecnologia, tanto individual como coletivamente. Outros escreveram livros com temáticas excelentes.

Essas pessoas têm em comum a desconfiança quanto a esse status quo do universo tecnológico, e são movidas por suas experiências e pela vontade de levar mais gente a se preocupar com a maneira como fazemos e consumimos tecnologias.

Então, antes de ficar pessimista, ou de achar que não dá para fazer nada “porque o mundo agora é assim mesmo”, talvez valha conhecer algumas das iniciativas que têm surgido a partir dessa vontade de mudança. Escrevi sobre algumas delas, aqui – e pretendo escrever sobre as demais (pessoas do doc e iniciativas) num outro post. Vale pensar em se envolver em algum(ns) projetos capitaneados por essa galera ou, ao menos, ler alguns livros e/ou assistir a outros documentários. Quem sabe começar desativando suas notificações? Aproveita e ainda evita que a bateria do seu celular gaste à toa 😉 Se estamos preocupados, precisamos nos envolver, conhecer mais sobre o assunto e assumir uma postura diferente. Evitar o tema não é uma opção.

Tristan Harris

Ele passou anos no Google como Google Design Ethicist. No documentário, conta um pouco dessa sua experiência, que demonstra a falta de preocupação da empresa com questões éticas e de privacidade. Harris é fundador e presidente da ONG Center for Humane Technology A página que apresenta a iniciativa diz:

We envision a world where technology is realigned with humanity’s best interests. Our work expands beyond tech addiction to the broader societal threats that the attention economy poses to our well-being, relationships, democracy, and shared information environment. We must address these threats to conquer our biggest global challenges like pandemics, inequality, and climate change.

A ONG convida quem quiser ajudar a remodelar a maneira como construímos e consumimos tecnologias: https://www.humanetech.com/get-involved – e ressalta que não precisa ser empreendedor, programador ou o que quer que seja para se envolver; se você for da área de tecnologia é bem-vindo, mas basta ser “cidadão, educador ou pai/mãe”. Para saber o que exatamente dá para fazer junto a eles, é preciso fazer um cadastro inicial.

Shoshana Zuboff

Shoshana Zuboff é professora em Harvard e autora do livro “The Age of Surveillance Capitalism”, sobre o qual você pode ler neste link – https://shoshanazuboff.com/book/about/. Este documentário que postei aqui explica muito bem a ideia do capitalismo de vigilância de que ela fala.

Justin Rosenstein

Com mais de 170 mil seguidores no LinkedIn (o que não quer dizer nada por si só e nem sei por que citei aqui, mas ok), Justin, que estudou em Stanford (isso também não quer dizer lá muita coisa, por si só), foi da Google e do Facebook, e depois seguiu fazendo seus projetos pessoais: o Asana, um software independente que tem a função de melhorar a produtividade das pessoas, e o One Project, voltado para o design de governança e sistemas econômicos mais “equitativos, ecológicos e efetivos”, segundo ele informa no LinkedIn. O site dele é este: https://justinrosenstein.com/ e no vídeo ele fala sobre a Asana.

Roger McNamee

McNamee é um investidor no Vale do Silício. Ele injetou dinheiro no Facebook e ajudou Zuckerberg a crescer, mas, hoje, como o documentário da Netflix mostra, é um ferrenho crítico ao modo como a empresa orienta suas atividades. Ele afirma que o Facebook é uma ameaça à democracia, e acusa a rede de espalhar as chamadas fake news.

McNamee escreveu um livro chamado Zucked: Waking up to the Facebook Catastrophe. Vale dizer que, no vídeo que postei aqui, ele diz que a Apple, de maneira bem diferente do Facebook, é responsável com os usuários em relação a questões de privacidade – o que mostra que as opiniões de todas estas pessoas podem ser diferentes em relação às companhias de tecnologia envolvidas em todas essas temáticas. Serve para construirmos o nosso próprio pensamento crítico.

Tim Kendall

Kendall foi presidente do Pinterest e Diretor de Monetização do Facebook. Ele criou um app chamado Moment, desenvolvido para ajudar as pessoas a fazerem “detox” de seus smartphones. O aplicativo está disponível para ser baixado de graça na App Store e aqui há mais informações –  https://inthemoment.io

Rashida Richardson

Ela trabalhou no Facebook e em vários outros lugares, e hoje é a diretora de Policy Research no AI NOW – um instituto de pesquisa em inteligência artificial que examina as implicações da IA para a sociedade ligado à New York University; o site é este aqui: https://ainowinstitute.org/ e a página do site que fala sobre a Richardson é esta: https://ainowinstitute.org/people/rashida-richardson.html .

O instituto dedica-se a pesquisas que contribuam para que sejam criados mecanismos, políticas, leis etc. para que haja responsabilidade/responsabilização pelo uso e a produção de tecnologias envolvendo inteligência artificial. Atualmente, as quatro principais frentes de pesquisa do núcleo são: direitos e liberdade; trabalho e automação; preconceito e inclusão; segurança e infraestrutura crítica.

Jaron Lanier

Lanier, que é cientista da computação e filósofo, trabalhou na Microsoft até 2009. Depois, ele escreveu vários livros além do citado “Ten arguments for deleting your social media accounts right now”; escreveu um chamado “Who own the future?” e ainda “You are not your gadget”, entre outros, apresentados em seu site: http://www.jaronlanier.com/ . Aliás, no site ele reforça que não tem (mesmo!) contas em redes sociais.

Cathy O’Neil

Cathy é uma matemática americana, autora do site/blog mathbabe: https://mathbabe.org/ e do livro “Weapons of Math Destruction”, sobre o impacto dos modelos matemáticos e dos algoritmos de IA em diversas áreas da sociedade (destaque especial para a educação e para o mercado financeiro). O mais legal desse livro é que ela usa uma linguagem super corriqueira, inteligível, para nos explicar os modelos matemáticos e suas implicações (como jornalista e doutoranda, já estava desacostumando de livros que explicam as coisas de uma maneira mais, digamos, objetiva…). A obra ainda não está disponível em português, porém. De todo modo, a palestra dela no TED dá uma boa introdução à perspectiva de O’Neil.

Uma última curiosidade: Jeff Orlowski, o cineasta norte-americano realizador do doc, já tinha feito dois outros documentários, “Chasing Ice” (de 2012) e “Chasing Coral” (de 2017), que são ligados a temáticas de responsabilização, por assim dizer, mostrando impactos que a humanidade exerce sobre a natureza.

Para assistir ao doc na Netflix: https://www.netflix.com/title/81254224

Imagem do post: Markus Spiske @ Unsplash

Sobre esse vírus que chegou chegando, a educação a distância e… nós nisso tudo

O início deste texto vai parecer um pouco catastrófico, mas eu vou fazer a pergunta que quero fazer: onde você estava quando o mundo parou, quer dizer, quando a quarentena começou? O que estava fazendo, ou prestes a fazer? Quais eram os seus planos?

Certamente, se estava vivendo, você estava agindo e também tinha planos. Estava para realizar algo, tinha expectativas, estava à espera de alguma coisa. Tinha acabado de começar a faculdade, quem sabe um emprego novo, ou esperava conseguir um; ou tinha finalmente comprado um tênis de corrida para correr a sua primeira maratona. Havia comprado passagens para a sua lua de mel? Será que estava prestes a casar? Ou ia comemorar o aniversário com uma festa modesta, mas que reuniria os amigos principais… ou estava para estrear uma peça de teatro, ou começar a se acostumar com a ideia do filho na creche. O coronavírus não perguntou o que estávamos fazendo: ele simplesmente chegou.

E, ao chegar, encontrou o mundo como estava: vamos combinar, estava meio de pernas para o ar. Tudo andava muito acelerado. Se não tínhamos nada de novo acontecendo, a vida estava “parada” demais; sempre muitas demandas e muitas entregas para fazer, sempre muito trabalho, muita gente para atender. Ou pouco trabalho, mas também pouca grana, ou quem sabe muito trabalho e pouca grana. Tínhamos tanto a resolver. Ainda temos! Mas o planeta pediu pausa. Como é que se age em um momento de pausa? A gente não sabe muito bem. A gente não está acostumado a viver de uma forma mais devagar, de uma forma diferente, em que dar conta de tudo parece impossível. E a gente sempre se pendurou nos nossos celulares, mas agora parece que em breve vamos nos cansar de olhar para eles, uau.

Esta reflexão pode ser estendida ao ensino a distância. Como? Bom, muito antes de o coronavírus chegar, vínhamos debatendo o ensino a distância. Não só debatendo: vínhamos trabalhando a educação a distância. Alguns com mais cuidado e cautela, outros querendo endereçar a coisa de uma maneira menos crítica, o que é preocupante. Muitas eram as perguntas que vínhamos fazendo, enquanto educadores, estudantes, responsáveis pelo processo de aprendizagem, pais de alunos. Funciona? Não funciona? Dá para aprender mesmo com ensino online? Dá para acompanhar os alunos? Dá para avaliar os alunos?

Quando o vírus chegou, as perguntas estavam todas sem respostas, e assim continuam. Mas será que esta não é uma oportunidade para debatermos até mesmo as perguntas que vínhamos fazendo sobre ensinar e aprender a distância? Há tanto a ser questionado antes mesmo dessas perguntas que coloquei aí em cima. Um exemplo: no Brasil, muitos alunos não têm uma conexão de internet capaz de dar conta de assistir aulas. Poderíamos nos perguntar: e agora? Com essa conexão, como eles vão assistir aulas? Mas também poderíamos nos perguntar se é mesmo necessário manter o mesmo esquema de aulas expositivas. Por que as aulas têm que ser assim? Ou por que não têm que ser? Como podem ser? O que podemos fazer?

Puxando um fio a partir desta última pergunta, eu enfatizaria o plural que ela envolve. Se tem uma coisa que o coronavírus tem é isso, de ser coletivo: ele é de todos, não está deixando ninguém tranquilo, e não é porque estamos isolados fisicamente que podemos ou devemos ou queremos realmente nos isolar. A situação pede coletividade, ação em rede; exige que se pense no comum. Será que sabemos fazer isso? De verdade?

Certamente, se é para agirmos de maneira conjunta, não se pode esperar que um professor que ainda não tinha se familiarizado com as tecnologias digitais, seja pelo motivo que for (muitos apenas deram aulas presenciais em sua vida até hoje…), de repente se acostume com elas e consiga trazer soluções mirabolantes. Não se pode esperar que todos os problemas de conexão sejam resolvidos da noite para o dia. Ou que questões ligadas ao chamado letramento digital façam PLUFT! e simplesmente sejam todas acertadas, equilibradas. Não se pode esperar que alunos fiquem todos tranquilos, como se nada estivesse acontecendo, e nem que consigam dar conta de estudar de uma forma mais independente de repente, se nunca antes o fizeram; que consigam se concentrar mesmo em meio aos irmãos menores brincando ou porque têm que cuidar deles, e nem vou repetir a questão da qualidade da internet. Não adianta tampouco esperar que pais consigam ser necessariamente bons em homeoffice e em apoiar o homeschooling ao mesmo tempo. Tudo isso seria fazer mágica, não viver; seria ir contra o tempo de uma maneira que não podemos ir, pois, até que se prove o contrário, o vírus fez a gente diminuir o ritmo, e não aumentar. Então, o que não estava resolvido antes, não será resolvido de repente.

O que é que dá para fazer agora, seja você educador, responsável ou estudante (muitas vezes somos os três ao mesmo tempo)?

Já dei minha opinião sobre isso ali no alto, quando falei em coletividade: se tem uma única coisa que vai ter que mudar mais rápido é a nossa capacidade de avaliar o que conseguimos fazer, no caos, para colaborar. Se nada pudermos fazer, que ao menos não saiamos responsabilizando um lado só por uma coisa que envolve uma série de fatores em rede e uma coletividade. Vamos também respeitar quem está na educação há muito tempo e tem se empenhado constantemente para estudar e implementar caminhos? Essa também é uma atitude sensata!

Ficar revoltado porque a escola dos filhos não adotou aquela plataforma de inteligência artificial até hoje não vai adiantar nada; aliás, se quer um conselho de quem pesquisa o assunto, não temos comprovação de que isso funcione. Não vai adiantar nada também reclamar que cada professor do seu filho está agindo de um jeito x ou y: acredite, cada um está tentando fazer o melhor que pode, na velocidade que pode e com a criatividade e os recursos de que dispõe. Há trocas de ideia acontecendo e aulas e o vírus, e a vida rolando, tudo junto. Não está sendo assim com cada um de nós, afinal? Não estamos todos tentando reorganizar nosso tempo, nossas demandas? Também não adianta querer virar super mãe ou super pai, mais ainda do que já quer normalmente, e tudo bem não saber muito como lidar com a questão de os filhos estarem em casa e você também, cada um com sua lista de tarefas. Tudo bem não saber lidar com o que é novo, e aliás mesmo o que já não era novo como a educação a distância agora exige nova reflexão porque o contexto mudou!

E sim, é possível refletir e agir. Paralelamente. Ta aí uma coisa que o corona está ensinando.

É improdutivo ficarmos olhando para o que não podemos fazer. Coisa mais chata e frustrante é isso. Então, por que não olhar para o que podemos fazer? Podemos trabalhar nossa paciência, nossa calma. Podemos trabalhar nossa capacidade de agir juntos. Podemos ampliar a capacidade de ouvir, de nos abrir às ideias das outras pessoas. Repensar práticas, medos, preconceitos, por que não? Se tínhamos algo a perder, agora não temos nada, nadinha nesse sentido. É mergulho e ação; calma, mas não passividade. Podemos olhar para o nosso comportamento: será que podemos ser mais ativos? Mais atentos, mais curiosos, mais independentes? Podemos ajudar alguém? Sabemos pedir ajuda? Sim, é importante saber pedir ajuda! Se você é aluno, e eu considero que todos somos em algum sentido, pense que isso não tem a ver com aprendizagem ser a distância ou não: em todo processo de aprendizagem, sempre existem maneiras de o aluno ir se tornando mais independente e mais engajado. E também vale ser paciente para esperar ser ajudado; às vezes, a pessoa que vai te ajudar está também se preparando e já vai te responder. Somos os mais impacientes para receber respostas às nossas mensagens e aos nossos anseios, resolver os nossos problemas! E a quarentena ninguém nem sabe quando vai acabar, então… uau, que teste!

Porém, esta reflexão não será útil apenas para agora, mas para quando voltarmos à “normalidade”, que talvez nunca seja exatamente a mesma de antes. Tomara que não seja. Tomara que voltemos, claro, a nos encontrar e possamos ter encontros presenciais, o que desejo muito, pois não acredito que a educação a distância virá a substituir a “tradicional” – até por razões em parte parecidas com aquelas pelas quais não queremos só falar com nossos amigos e nossa família por vídeo (já estamos até meio cansados e foram-se apenas alguns dias). Os educadores, e nesse grupo me incluo, têm muito o que pensar e repensar sobre educação, educação a distância e a nossa postura diante de tudo isso. A distância na educação, aliás, demanda importante reflexão, seja na modalidade presencial ou online, que no fundo são dois lados de uma mesma moeda (post sobre isso aqui). E nós temos pensado e agido. E vamos seguir com nossos debates, nossas reflexões.

Antes que você diga algo como “poxa, mas a educação a distância está aí há tanto tempo, buscando uma solução, até hoje não encontraram?” lembre-se: não se trata de haver uma solução. A educação demanda perspectivas e caminhos, não uma única solução. Daí uma característica, aliás, das Humanidades; não somos de uma solução racional, única, que vai dar certo como A mais B. Entendemos que a educação envolve muitas questões, muitos problemas e diversas oportunidades. Geralmente, quem trabalha com educação trabalha muito e gosta muito do que faz, mas justamente por isso resiste a respostas pré-fabricadas e coelhos saindo de cartolas: quanto mais experiente o educador, mais ele sabe que isso não existe, aliás.

Temos um novo ingrediente: o senso de urgência em que a situação nos colocou. Mas não é com desespero, impaciência, cobranças absurdas e falta de sensibilidade que vamos chegar a algum lugar. Tudo indica que é com empatia, criatividade, compartilhamento e muito trabalho duro, e em conjunto. Quando algo assim chega… bom, não dá para vir com frases feitas, pois é a primeira vez que enfrentamos algo assim. As respostas que havíamos encontrado talvez tenham mudado, mas não é todo dia que as respostas mudam porque as perguntas também mudaram. Que excelente oportunidade temos nas mãos.

Imagem do post: Sharon McCutcheon @ Unsplash

Férias? Mas como é que se tira férias do doutorado?

Esta aí a pergunta que não quer calar: por que é tão difícil tirar FÉRIAS, desligar a cabeça um pouco, quando estamos envolvidos com uma pesquisa de doutorado (ou de mestrado)?

Acredito que a principal razão para essa dificuldade de parar quando estamos trabalhando em uma pesquisa se deve ao fato de que temos prazos e muita cobrança por produtividade, além de boletos e da vida que continua acontecendo e trazendo abacaxis novos para descascarmos todos os dias; mas, aprofundando um pouco mais essa análise, penso que há algo mais que muito nos desafia nessa etapa da vida.

Um trabalho de pesquisa a gente não desliga, não tem botão de off: você não tem como fechar a tela do seu computador e ir embora da pesquisa e reencontrá-la daqui a um dia, ou algumas semanas. A pesquisa mora em você. Você é a sua pesquisa e ela é você.

Não é como um trabalho “comum” em que é necessário usar um crachá; ou talvez o nosso crachá meio que esteja lá, pendurado, dia e noite. Se o trabalho de mestrando e doutorando não exige bater ponto, por outro lado quando abrimos os olhos de manhã pensamos na pesquisa e, ao dormir à noite, também! Na praia, pensamos na pesquisa. Na rua, conversando com as pessoas, pensamos na pesquisa. Vendo filmes às vezes pensamos na pesquisa. E não achamos tempo para ler romances. Como é que se desliga a cabeça, então?!

Bom, talvez nunca desliguemos. Quando o assunto da pesquisa nos instiga, nos interessa, ele passa a fazer parte de nós e não há como fechar a página (metaforicamente) e abri-la de novo no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Na verdade, o que acho que precisamos fazer é buscar uma relação saudável com o fato de que a pesquisa está enlaçada conosco. Isso é um fato, então, forçar o desligamento não dá certo…

O que significa buscar essa relação saudável? Bem, uma das coisas que precisamos fazer é nos dar as férias e momentos de descanso, quando percebermos que estamos precisando. E, nesses momentos, nos envolver em outras atividades, de preferência que exijam a nossa concentração e dedicação momentânea a algo totalmente diferente.

Por exemplo, tirei uma semaninha após quatro anos sem parar de trabalhar e fui para uma cidade de praia. Em vez de ficar só sentada torrando no sol, comecei a praticar standup paddle e me apaixonei! Enquanto estava lá, em cima da prancha, não pensava em mais nada, a não ser nas remadas que tinha que dar, no vento, na água, com foco total nas tartarugas que de vez em quando eu via no mar!

Mesmo que não seja possível viajar ou fazer algo diferente, até porque a grana do pesquisador é tão curta quanto o tempo, é importante se organizar para ter uma vida saudável, com horários, uma rotina, espaço para por os pensamentos em ordem e para respirar. Dificilmente quem vive outra(s) rotina(s) entende o que vivenciamos (o que traz vááários problemas de relacionamento etc), mas, de certo modo, é assim que gostamos de viver, geralmente temos esse perfil, então nos cabe desenhar a melhor estratégia para viver esta vida louca vida de pesquisador.

Até porque, a ideia é que ela comece no mestrado/doutorado, não termine aí… mesmo que o governo do Brasil queira dizer o contrário neste momento ;/

A foto do post é de um entardecer lindo que prestigiei em Búzios-RJ.

Pontos de Interrogação em IA, machine learning e cognição humana – Parte 1

Estou entrando no meu segundo ano de doutorado e agora estou focada em dois dos tópicos da minha pesquisa: 1) Estudar fenomenologia e pós-fenomenologia; 2) Estudar machine learning.

A minha pesquisa de doutorado é em filosofia da educação/filosofia da tecnologia, já que a minha inquietação é com as tecnologias digitais no contexto da educação. Tomo como base, porém, um referencial teórico menos comum nessa área que é o dos 4Es da cognição – um conjunto de teses e argumentos filosóficos que vêm sendo desenvolvido a muitas mãos por diversos pesquisadores que buscam entender como a mente humana funciona. Esses pesquisadores trabalham diversos tópicos relacionados à atividade cognitiva humana, como a percepção, a memória, a aprendizagem, a questão das representações, entre outros, levantando importantes questões ainda não resolvidas acerca desses elementos. Uma introdução bastante didática aos 4Es encontra-se no livro “A Mente Humana para Além do Cérebro”, que lancei em Portugal com outros vários pesquisadores em novembro de 2019, link para o PDF aqui.

Neste post, vou focar no segundo tópico de meus estudos atuais, o machine learning.

Uma pesquisa sempre parte de perguntas, já que nós, pesquisadores, desejamos ir em busca de respostas para alguma coisa. No caso da minha pesquisa de doutorado, ainda estou trabalhando para formular minhas perguntas, mas, a partir das inquietações que venho apresentando, posso dizer que a pergunta mais ampla seria como a inteligência artificial pode contribuir para a educação. Porém, essa indagação precisa ser lida de um modo mais amplo do que o da simples e imediata aplicação; não quero perguntar como a IA pode ajudar a educação partindo do pressuposto de que já ajuda (muito menos de que concentra todas as soluções), e que então precisamos entender como aplicá-la em sala de aula, mas um passo anterior, digamos assim. Como é que, entendendo a inteligência artificial e os questionamentos que ela suscita, nós podemos pensar sobre aprendizagem & tecnologias digitais? Quais as questões despertadas no âmbito da IA que, revelando aspectos da cognição humana, podem contribuir para pensarmos a educação, vista aqui de maneira mais ampla do que a sala de aula; a educação como aprendizagem de um modo geral, um estar-no-mundo baseado em um processo contínuo de aprendizagem?

Para ir em busca da compreensão de tais questões, cuja fundamentação é filosófica, neste momento estou em busca de compreender os desafios que impulsionam os pesquisadores da IA. O que eles querem encontrar? O que pretendem? O que sentem que falta nas pesquisas deles para que cheguem aonde desejam? Aonde eles desejam chegar?

Preciso, também, entender quais os cruzamentos que poderiam ser estabelecidos entre os questionamentos dos pesquisadores da IA e os questionamentos filosóficos para a tecnologia – uma vez que o aporte teórico que escolhi é aquele relacionado às abordagens cognitivas atuais, estou fazendo uma jornada rumo à fenomenologia, que trata de aspectos essenciais da percepção humana, do nosso estar no mundo, da forma como percebemos as coisas e agimos a partir de tais percepções; a fenomenologia é capaz de estabelecer um contraponto especial com a IA por vários motivos, entre eles por ir fundo nas questões do corpo, defendendo um estar no mundo corporificado que leva em conta as nossas características orgânicas de um modo muito particular e com muitas possíveis aplicações. Em breve farei um post sobre fenomenologia e um sobre pós-fenomenologia, a qual é bastante voltada para as questões específicas da relação humana com a tecnologia.

Em busca de questionamentos que marcam o campo da IA, buscando ampliar aqueles que já conheço superficialmente, tenho lido artigos e livros e recentemente ingressei num curso online da University of London disponível no Coursera que tem bastante material sobre o assunto – indicações de livros, links e vídeos. Foi como conheci o nome do engenheiro e pesquisador da IA Pedro Domingos, que neste vídeo (desculpem, é no site da IBM, que não permite embedar o vídeo aqui) resume um dos problemas que impulsionam a IA, hoje.

O vídeo diz o seguinte (segue a transcrição completa):

People often ask me – what’s the relationship between AI and machine learning and big data? Machine learning is the subfield of AI that deals with getting computers to learn. So you can think of AI as the planet that we’re going to, and machine learning as the rocket that will get us there, and big data as the fuel for that rocket.

There are many examples of AI and machine learning at work in the world today, that touch people’s everyday lives, but they aren’t even aware of it. For example, every time you do a web search, when Netflix recommends a movie, when Facebook selects posts, when Amazon recommends a book, it’s machine learning that’s doing that. Then there are people who apply machine learning and AI in things like robotics, and vision, and natural language processing, or medicine, or oceanography, or social science, you name it.

We’ve gotten very far in AI in the first 50 years. There’s a million miles more to go. So we’re going to need a lot of compute power that is specialized for things like machine learning. I think Intel has something very important to contribute to all of this which is at the end of the day, it all starts with the hardware.

Intel is in the leading position to bring us the hardware and the architectures to try to foster this open community that we really do need to make progress.

We’re actually now for the first time in history at the point where you could say you can have a supercomputer that is about as powerful as the human brain. So the thing that is really holding us back is that we don’t understand well enough how, for example, learning works. If we were able to devise a learning algorithm that is truly as good as the one in the human brain, this would be one of the greatest revolutions in history. And it could happen any day at this point. At this point this is a problem that if we could solve it we solve all other problems. If I come up with a better machine learning algorithm, that algorithm will be applied in business, in finance, in biology, in medicine across the board.

As partes em itálico na transcrição são marcações minhas. Vou falar sobre elas no segundo post que escrevi sobre isso, sigam-me se ficaram curiosos 😉

Imagem do post: Clarisse Croset @ Unsplash

Leia o próximo post:

Pontos de Interrogação em IA, machine learning e cognição humana – Parte 2

O professor é substituível pelas tecnologias digitais?

A pesquisa Nossa Escola em (Re)Construção, promovida pelo Porvir entre os anos de 2017 e 2018, coletou dados entre quase 20 mil jovens de 11 a 21 anos e constatou que “o melhor da escola é o professor“. Texto do Porvir sobre o assunto diz que:

“Na plataforma, os participantes foram convidados a dizer como é a sua escola atual ou a última em que estudaram e como eles gostariam que ela fosse. Ao avaliar 11 aspectos da instituição de ensino, em uma escala de 1 (Tá tenso) a 5 (Tá tranquilo, tá favorável), as maiores notas foram para o professores (3.9), seguidos pelas aulas e matérias (3.8). Entre os últimos itens, aparece o uso de tecnologia (2.7) e as atividades extraclasse (2.9)”.

Que o professor faz toda diferença na vida do aluno não é exatamente novidade. No Brasil, com toda a precariedade do ensino público, ameaçado ainda mais no governo atual, temos professores premiados (veja também este link) e sabemos que, em muita escola onde falta luz, água, merenda e tudo o que se pode imaginar, não raro sobra dedicação de boa parte dos docentes para que os alunos continuem aprendendo.

Mas a questão de a tecnologia aparecer como um dos últimos itens na pesquisa do Porvir, somada a outra notícia recente, é o que impulsiona esta minha reflexão aqui. Apesar de a cada dia ficar mais claro que a presença do professor é insubstituível e que não há tecnologia que dê conta de atuar no lugar dele (muito pelo contrário), existe uma certa tendência a enaltecer as possibilidades de que essa substituição aconteça.

O empreendedor Elon Musk recentemente premiou com U$ 10 milhões duas startups de tecnologias educacionais (as chamadas edtechs) capazes de “substituir” professores por meio do uso da tecnologia. Uma delas foi a onebillion e a outra foi a KitKitSchool. O site Business Insider diz que “launched in 2014, the competition was set up to empower children to take control of their learning. It challenged innovators around the world to create technology that would enable children to teach themselves basic reading, writing, and arithmetic within 15 months”. A competição como um todo me parece equivocada por promover “substituição” em vez de soma, mas este trecho me pareceu ser uma coleção de equívocos ainda maior. “Empoderar” crianças quanto ao “controle de seu aprendizado”? Leitura, escrita e aritmética básicas em 15 meses? Estimular gente inovadora a pensar em tecnologias que, de algum modo, promovem o descarte do professor?

A questão é: o que ganhamos com isso?

Afinal, é para isso mesmo que devemos trabalhar nossas tecnologias? Para substituir o professor, ou para fazer as pessoas pensarem que essa substituição é possível? E o que seria esse “professor”, tão facilmente substituível nessa concepção? Seria um mero transmissor de conteúdos “básicos”?

E mais: crianças “empoderadas” são crianças que têm “poder” e “controle” sua própria aprendizagem?

Não quero tirar o mérito de tecnologias que possam ajudar mais pessoas a aprender a ler e a escrever, de forma alguma. Também não sei ainda como em áreas remotas, pobres e com deficiências de tudo, crianças poderão ter acesso a aplicativos com tais recursos, a não ser aquelas selecionadas para a pesquisa empírica; porém, se tiverem, jamais serei contra; trata-se da importante questão da democratização da tecnologia digital. O ponto em que sempre insisto é o da substituição: é nela que devemos focar, quando falamos de tecnologias educacionais?

A responsabilidade da mídia

Talvez nós, jornalistas, sejamos grandes responsáveis por contribuir para a construção de conceitos equivocados nesse sentido. Afinal, a manchete “Elon Musk awards $10 million prize to 2 startups replacing teachers with tech” ficou a cargo do Business Insider; no site do XPrize, promovido pelo Musk, não se vende a coisa como substituição, ao menos nao num primeiro momento. O site diz “Empowering children to take control of their own learning”. Isso, sem a questão da substituição do professor, pode tomar ares bem diferentes.

Sem dúvida, há muitos fatores envolvidos nessa reflexão, e de indubitável há o fato de que sim, a educação e a tecnologia devem ser para todos. Mas parece estar havendo uma confusão bastante significativa quanto a esse ponto da substituição do professor pelas tecnologias, ainda mais com a popularização da inteligência artificial. Mesmo já tendo muito com o que nos preocupar no Brasil em termos de educação, precisamos ficar atentos a mais esse aspecto, que na realidade relaciona-se com a questão mais profunda e anterior da relação humana com as tecnologias digitais: para onde estamos caminhando? Quais os impactos dessa relação? O que esperamos dela? No que ela nos transforma?

Vale a reflexão.

Vamos ampliar a nossa percepção em vez de deixar que os algoritmos a reduzam cada vez mais?

Quem está ligado nas notícias sobre inteligência artificial já deve ter visto artigos falando sobre como os sistemas de IA reproduzem os nossos preconceitos e as nossas visões estereotipadas. Afinal, são programadores que criam algoritmos e programam esses sistemas. O algoritmos são como receitas que esses sistemas seguem, então… são receitas baseadas em comportamentos humanos.

Melhorar a diversidade na IA demanda nada mais, nada menos que a aumentar a diversidade fora da IA (se é que existe uma maneira de estaremos “fora da inteligência artificial” hoje). Temos que ampliar a maneira como vemos o mundo, buscar novos pontos de vista, compreender por que somos preconceituosos, e de onde vêm os nossos conceitos pré-concebidos acerca de tanta coisa – até daquilo que pouco conhecemos…

Caso contrário, as máquinas vão continuar reproduzindo a pequenez do nosso pensamento limitado, enquanto elas podiam trabalhar para que o universo expandisse e as opiniões múltiplas fossem estimuladas cada vez mais…

Bem, e como podemos começar a repensar nossos preconceitos, nossos olhares enviesados, libertando-nos disso? Eu gostei deste TED, que trago aqui como um pontapé inicial:

Por que 87% dos cientistas afirmam que o aquecimento global está acontecendo por influência da ação humana, enquanto somente 50% das pessoas que não estão pesquisando o tema afirmam acreditar nisso? Por que achamos que sabemos tanto sobre algo, quando não sabemos praticamente nada? Por que propagamos tantas notícias falsas, nas quais acreditamos sem questionar? Por que cientistas como o Dr. Shepherd, que estudam o clima, preveem chuvas fortes com uma semana de antecedência e tanta gente não acredita?

E, algo MUITO importante:

Por que só buscamos informações para embasar aquilo em que já acreditamos?

Este vídeo nos faz pensar sobre tudo isso.

O debate continua, não termina por aqui. Só quis estimular a discussão 😉